

Fluxo constante, balanço estável.
Tecnologia, autóctones.
Mundo em comum, mundo comum.
Homens-robôs, primeiros homens.
A rede está nas duas pontas.
Por um lado um mundo em expansão, a evidência do virtual, da troca de informações, da urgência. Do outro lado, ou na outra rede, está o índio, dizendo o óbvio, como diria Caetano.
Óbvio que é preciso parar, não se faz necessário uma conexão com um mundo 24 horas por dia. Os índios inventaram a rede para dormir, aquele balanço de si mesmo, movimento próprio independente do mundo. Para onde cada uma dessas redes pode nos levar.
A TECNOGRAPHY nesta edição balança entre as duas ideias de rede, para achar algum caminho para arte neste mundo virtual cheio de possibilidades, ou pode apenas balançar para movimentar no seu próprio lugar, porque pensamento é acima de tudo movimento de si mesmo.
Alexandre Rese - Iriê Salomão Jr.
arte e reflexão
no balanço da rede
openning the issue:

“The Radiant Madonna” , Owen Dippie, Nova Zelândia. Fotografado por The Bushwick Collective

rede é teia
por IRIÊ SALOMÃO Jr.

A palavra rede anda por todos os cantos da nossa sociedade. A rede aparece como conceito, como metáfora ou como símbolo. Sua ascensão à imagem de nosso tempo encobre outros diversos sentidos que esta palavra poderia despertar em nós. Quando penso em rede, sinto-me um pouco longe das considerações de Manuel Castels a respeito da nossa sociedade. Admiro por demais o trabalho do professor espanhol para tentar abordar a nossa comunidade por esse ângulo. Deito melhor numa rede, quando estendida por artistas, e é nela que não paro de pensar desde quando definimos esse tema. Tentei fugir de todas as formas da abordagem que trago aqui, mas se tem algo que se assemelha à rede, é a teia.
Fiquei preso nas redes e teias de artistas porque na verdade elas me levam para um lugar além daquele que posso teorizar. Interesso-me menos em refletir sobre o todo da rede, das possibilidades e limitações desta imagem, e penso mais nos encontros criados que geram e justificam o sentido da rede. Penso no ano de 1848, quando Edouard Manet embarca num navio impulsionado pela vontade de se afastar das divergências familiares, e também com o sonho infantil de se tornar um grande marinheiro. Não demorará e o menino se tornará o professor de desenho dentro do navio. Passados muitos dias o navio atracava na cidade do Rio de Janeiro, e Edouard vai conhecer a luz clara dos trópicos, a vida dos escravos que ele comentará em cartas com a mãe. Após essa viagem Manet volta artista, pronto a desafiar a arte de seu tempo, certo das luzes que observou e marcado pela lembrança dos homens e mulheres que viu naquela cidade tão diferente do seu habitat parisiense.São esses encontros esses momentos que mudam a arte de um tempo, os comportamentos e fazem nascerem elementos de força inquestionável nas obras de artistas de todos os lugares.
Desta forma, lembro-me do livro do historiador de arte Worringer quando comenta no seu prefácio a importância do encontro casual com George Simmel no Museu de Trocádero, como a primeira impressão da filósofa Maria Zambrano sobre o jovem Lezama Lima, quando numa visita à Cuba, a filósofa naquela época, apenas assistente que percebe um jovem calado que a conhecia e não só isso, comentou e reconheceu o trabalho da ainda desconhecida Zambrano.
Imagino os dias em que Hélio Oiticica dividia livros com Eduardo Viveiros de Castro num apartamento no Rio de Janeiro. Penso nas cartas trocadas entre Schelling, Hegel e Holderlin que se apoiavam num desafio nada fácil de estremecer um status quo tempo. Penso no poeta que melhor registrou os encontros com outros artistas, falo aqui de Murilo Mendes traçando perfis poéticos de André Breton, Picabia, De Chirico e outros. Nenhum encontro seria tão casual e ao mesmo tempo tão marcante quanto o encontro entre Walter Benjamin e Marcel Duchamp num café parisiense. E penso principalmente no texto de Valèry sobre Edgar Degas, nos mesmo livro vejo fotos de Mallarmé e Degas. Como também sinto a força do contato mágico entre Baden e Vinícius. Rapidamente minha memória busca o comentário de Caetano ao lembrar o tempo em que junto com Dona Canô assistia a Gilberto Gil. Depois dessas pequenas memórias recheadas de admiração, realmente acho que o melhor da rede não é saber que estamos todos conectados uns aos outros, é saber que sempre haverá um encontro. ★

A Fuga de Henri Rochefort (1881), Édouard Manet
REDES. Quantos significados cabem em cinco letras? Quantas vezes a “ressignificamos”? Se pesquisarmos a origem de redes, vamos descobrir uma infinidade de sinônimos. Desde aquela baseada em linhas costuradas que formam uma malha para que pescadores pudessem buscar nas águas o que comer, até a das relações pessoais, cheias de sofisticados códigos que elaboramos diariamente para vivermos em sociedade.
E assim continuamos a milhares de anos... no balanço para o descanso no meio da floresta, dos negócios estabelecidos pelos comerciantes das caravanas que avançavam pelo extremo Oriente. Do nosso entrelaçamento com deuses e heróis. Do contato com o divino através de muitos intermediários. Das nossas ligações amorosas, das intrigas palacianas, dos acordos de paz. Da comoção com aqueles que fogem. As grandes navegações, o novo e o velho mundo unidos por pontos luminosos dos astros. Da tela em branco que espera o artista ler a carta de um amigo que mudou-se para uma pequena ilha da Oceânia. Da tecnologia que conecta pessoas pelo mundo. Ou daqueles que com um clique conseguem ver detalhes da Capela Sistina como só Michelangelo viu. Estamos o tempo todo conectados à uma grande rede invisível. São tempos de sobreposições, de encontros improváveis.
Nesta edição, o desafio da TECNOGRAPHY foi tentar descobrir um caminho dentro deste labirinto que o tema redes nos impôs. Muitos poderiam ser os recortes, as costuras, os alinhavos. Por fim, respiramos fundo e encontramos fôlego e apresentamos nessa sessão, um apanhado destas conexões, como se estivéssemos tecendo uma narrativa, por vezes complexa, mas com bordados sutis para reflexões que não se dissolvem com o próximo toque na tela. Lance-se neste mar...
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timeline:
uma linha do tempo
lâmpada: novos olhares, novas prospostas e formas de interpretação
coletivo Opavivará

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OPAVIVARÁ nasceu no Rio de Janeiro em 2005. Hoje estão na TECNOGRAPHY por muitos motivos. Basta conhecer algumas de suas propostas como “Formosa Desacelerator” de 2014, feito para a Taipei Bienal, o Opa+Gia e outros.
Quando pensamos no tema rede, havíamos acabado de visitar uma exposição sobre a história das redes indígenas. Ao mesmo tempo que propúnhamos algo que retomava uma história brasileira, a idéia atual de uma sociedade em rede também nos jogava para outro lado.
Nesse balanço víamos muitos artistas que trabalhavam com esse conceito, e poucos que lembravam das redes indígenas. Enquanto todo Ocidente viu no repouso o momento do silêncio íntimo, do quarto distante, local escondido, de restabelecimento de funções do inconsciente, indígenas compartilhavam o repouso de uma maneira particular e isso muda tudo. De muitos trabalhos que pesquisamos o Opavivará foi aquele que mais se aproximou dessa primeira ideia da revista, que apesar dos recursos tecnológicos ao seu dispor, se coloca como elemento “vivo” se adaptando ao percurso. E cá está, o coletivo que relembra práticas sociais e que propõe novas experiências.
Para aqueles que não os conhecem, a TECNOGRAPHY servirá como cartão de apresentação, ou melhor, a primeira rodada, espera-se que não seja a saideira. O Opavivará realiza arte. Seu trabalho propõe práticas que alteram o modo ocupação de museus, espaços públicos e instituições. Acima de tudo, a arte do Opavivará mais do que para todos - ideia inatingível -, é com todos.
nossa herança Africana
entrevista com Rosana Paulino
É muito comum referir-se ao Brasil como um emaranhado cultural, no qual há espaço para todas as crenças, todas as raças. Uma terra de oportunidades. Mas para chegarmos até aqui, o andar tem sido de acertos, porém os tropeços foram inevitáveis e ainda persistem.
Olhar para o passado é fundamental para nos entendermos. E a história precisa passar por revistas profundas e é o que se tem tentado fazer. Movimentos culturais, artistas e pensadores têm colocado à luz novos prismas sobre a complexidade da formação da sociedade brasileira e como somos um reflexo difuso de velhos dias. Nessas discussões que chegam tarde, mas a tempo de nos fazer rever velhas injustiças, infelizmente ainda vigentes, encontramos fôlego e vozes ativas para semear mudanças. E uma dessas “vozes” que se faz ouvir é a da artista paulista ROSANA PAULINO.
A TECNOGRAPHY apresenta nesta edição, uma entrevista exclusiva com Rosana, que nos instiga à reflexão sobre questões urgentes sobre homens, mas principalmente sobre mulheres negras no país. Com trabalhos vigorosos, busca na multidisciplinaridade novas maneiras de rompermos com um imaginário cristalizado de preconceitos e esteriótipos. A jornada é longa, mas a artista não desanima e a arte está aí, como um canal poderoso para fomentar a conversa...

TECNOGRAPHY: o seu trabalho possui muitas bases: a herança cultural africana, os reflexos das mazelas do trabalho escravo no Brasil e as questões sociais acerca desses aspectos na sociedade contemporânea. Como é alinhavar estes complexos cenários dentro das imagens e objetos que cria?
Escultura cerâmica fria, linha de poliéster, madeira, metal e vidro
ROSANA PAULINO: Olha, é difícil explicar isso, como alinhavo estas questões! (risos) Porque discutir isto é tratar do processo criativo e este processo é uma incógnita, não sabemos como explicar. Vários cientistas, artistas, filósofos e outros estudiosos tem se debruçado sobre o tema e não têm encontrado respostas ou um consenso sobre como isto funciona. O que posso tentar esclarecer, é que estas questões sempre me incomodaram muito e sempre digo que só consigo trabalhar com aquilo que me incomoda. Então, quando estou pensando um trabalho, uma imagem, quero levantar discussões com o que se está produzido. Para isto estudo muito, diferentes áreas que vão da história à biologia, passando por sociologia, artes... não me limito a uma única área de pesquisa devido, como vocês apontaram, à complexidade da obra. Mas uma coisa é certa: apesar das diversas fontes o trabalho é uma expressão visual, então tenho que, visualmente, dar conta disso. Ou seja: tenho que traduzir visualmente meus pensamentos, minhas reflexões. Portanto, o resultado tem que ser construído utilizando a gramática das artes visuais. Caso contrário corro o risco de ter um trabalho e uma “bula” que tente explicar o que eu quis dizer com a obra.
TECNOGRAPHY: os negros no passado eram "retratados" por artistas brancos/ europeus com olhar pitoresco e muitas vezes de passagem pelo Brasil (Debret, Rugendas, para citar alguns e mais antigos). Artistas como eles criaram imagens que permearam o imaginário do brasileiro por muito tempo. Houve mudanças na representação do negro, mas foram suficientes e justas? Na sua opinião, isso mudou? Está mudando?
ROSANA PAULINO: Os negros e negras foram representados por artistas europeus que não estavam isentos dos preconceitos da época e, muitas vezes, isto é visível em suas representações. Outra questão é que as obras de artistas como os citados Debret e Rugendas, por exemplo, não têm a força expressiva e crua da fotografia. Muitas destas imagens não conseguem dar conta dos horrores da escravidão. Por ter sido representado por outros/as a população negra ficou à mercê de todos os pré-conceitos e estereótipos possíveis, mesmo quando o produtor da imagem não quis, conscientemente, colocar isto. As mudanças nesta representação ocorreram com o passar do tempo, sem dúvida, mas o que ainda falta no cenário brasileiro é a autorrepresentação desta população. Isto é extremamente importante porque quem não se representa não reflete sobre sua condição no mundo e fica a mercê do olhar alheio. Agora, só a autorrepresentação não basta. Temos que ter o reconhecimento e canais de escoação desta produção para que ela chegue as pessoas e, inclusive, que chegue às escolas. Os livros escolares ainda estão cheios de antigas representações que continuam a perpetuar um determinado lugar simbólico-social para a população negra.
TECNOGRAPHY: você usa imagens antigas, de antropólogos, botânicos e dá novo significado à elas. Como se dá esse processo de escolha do material para as suas obras?
ROSANA PAULINO: Sempre gostei de biologia. Na realidade, me preparei para ser bióloga desde muito cedo, mas fui fazer artes, que também era uma paixão, então estas imagens sempre me fascinaram. Em meu trabalho penso no uso da imagem de uma maneira meio “homeopática”, se posso dizer assim. Como na homeopatia, que tem o princípio do “semelhante cura semelhante” penso que no campo das imagens a coisa ocorre mais ou menos da mesma maneira: imagem “cura” imagem, ou seja, os danos causados por um imaginário nefasto só podem ser transformados através de outras imagens que instiguem, que façam pensar, que mudem ideias estabelecidas no senso comum. Portanto, ressignificar estas imagens é parte importante de meu processo de trabalho. Em relação à escolha das imagens, elas têm que mexer comigo, causar algum impacto. Olho para elas e penso: esta aqui dá uma boa discussão! Com outras não acontece esta empatia. Portanto, o processo de escolha é bastante subjetivo, difícil de explicar exatamente como ocorre.

TECNOGRAPHY: os seus trabalhos possuem um cunho que parece bastante pessoal, mas que também parece ser a voz de muitas pessoas. O quanto tem da Rosana e o quanto tem de histórias/ relatos de outras pessoas que você ouve e acabam sendo incorporadas no seu trabalho?
ROSANA PAULINO: Sempre vai ter muito da minha personalidade nas minhas obras. Sendo mulher e negra é impossível não me colocar dentro da minha produção. Aliás, todo/a artista, seja mulher, homem, negro ou branco, etc se coloca nas obras. Não acredito que exista aquela imparcialidade buscada pelas ciências na produção de arte. Aliás, esta neutralidade não existe nem nas ciências, diga-se. A partir do momento em que qualquer pesquisa que gere conhecimentos seja realizada por um ser humano vai ter um pouco desta pessoa em seus resultados. Por outro lado, minha história está recheada das vivências dos/das que vieram antes de mim ou das dos meus contemporâneos. Ninguém vive sem ser tocado/a pelas experiências sociais, coletivas. Então isto vai aparecer na obra também. Quando leio uma notícia como a dos meninos, cujo carro foi fuzilado à queima roupa e de forma covarde por policiais no Rio de Janeiro, não tenho como não sentir um pouco da dor daquelas pessoas e, ao mesmo tempo, não tenho como fechar os olhos ao fato de que isto é reflexo direto dos mais de 300 anos de escravidão que tivemos no país. Portanto, história pessoal e coletiva andam juntas e sempre vão aparecer na obra.
TECNOGRAPHY: a mulher negra é um ponto central nos seus trabalhos e sinaliza um universo que ainda precisa ser ouvido. Como você tem visto as manifestações de luta contra a desigualdade de gênero, o preconceito, a violência contra as mulheres?
ROSANA PAULINO: Estas manifestações são para lá de bem-vindas e estamos muito atrasados nisto! As mulheres ainda sofrem demais no Brasil e a mulher negra é a base da pirâmide, então imagina o lugar que ocupamos! Direitos são direitos e mesmo que certas parcelas da população não queiram aceitar este fato estamos na luta, temos que ser ouvidas. Tento dar minha contribuição através da produção do meu trabalho. Tem as que vão para a rua, as que militam nas escolas, nas residências... no meu caso faço isto através da minha produção. É importante que cada uma de nós que se sinta afetada se mobilize nos espaços em que se sinta melhor, que tenha domínio, para dar sua contribuição.
TECNOGRAPHY: como a arte deve se posicionar no combate dos discursos com teor de retrocesso dos direitos de igualdade? Arte tem esse papel?
ROSANA PAULINO: A arte pode ou não se posicionar nesta arena. Não acho que devemos cobrar da arte este posicionamento, não é papel dela. Agora, a artista, a cidadã irá sempre se posicionar e, quando isto ocorre, este posicionamento vai aparecer na produção. Vou usar aquilo que eu sei fazer, no caso, o trabalho artístico, para expressar meus pontos de vista, aquilo que eu acredito. Portanto, a escolha política é sempre do indivíduo, nunca uma imposição artística. Gosto
de colocar a relação arte/política desta maneira porque cada um/uma é livre para seguir por onde quiser. Penso que se não colocarmos deste modo podemos criar um certo tipo de patrulhamento e detesto esta ideia. Corre-se o risco de se colocar imposições como “Você é negro/negra e tem que discutir isto ou aquilo em seu trabalho”. Ou você é gay, indígena... neste caso, tira-se da/do artista aquilo que talvez seja o mais importante: sua liberdade de escolha e de decidir sobre o que quer tratar em sua obra. Então, acho que a questão sobre o que e como trabalhar parte sempre do indivíduo, não é uma imposição “da arte”, se podemos dizer desta maneira.
TECNOGRAPHY: como a arte pode/ deve transformar a nossa realidade? É possível?
ROSANA PAULINO: A arte é uma ferramenta importante para se questionar a sociedade. Ela, sozinha, não pode mudar as coisas mas pode ajudar a refletir, a questionar. Além disso, sabemos que crianças que tomam contato com a arte desde cedo tendem a se tornar, se este contato for bem feito, adultos mais críticos. Então, ela é uma ferramenta importante para se formar cidadãos que tenham uma atitude menos passiva diante da vida e dos desmandos das governanças, gente que vai ter mais ferramentas para cobrar seus direitos e, espero, mais senso de responsabilidade em cumprir seus deveres.
TECNOGRAPHY: nas séries "Bastidores" e na "Assentamentos", o seu trabalho se expande entre os materiais e os discursos. São imagens com um poder muito grande. É difícil transportar a ideia para a obra? Ela alcança o que você gostaria de dizer?
ROSANA PAULINO: É bastante difícil traduzir uma ideia em obra. Você tem que procurar os materiais mais adequados, tirar partido do que eles têm a dizer e como podem te ajudar a expressar suas ideias. Portanto, em trabalhos como os “Bastidores” ou as obras da série “Assentamento” preciso ter um encontro muito preciso entre conceito, ou discurso, como queira, e o material escolhido. Uma escolha errada no campo dos materiais pode enfraquecer o conceito, não traduzir direito o que estou pensando e comprometer o resultado final da obra. Sobre alcançar o que eu gostaria de dizer, a gente sempre chega perto mas não sei se alcança plenamente. E é isto que nos impulsiona para o próximo trabalho.
TECNOGRAPHY: o tema desta edição é "REDES", como você enxerga essa colcha de retalhos, essa teia de ligações que é a cultura brasileira? Essa característica da diversidade atinge você enquanto artista? Como? Quando?
ROSANA PAULINO: A cultura brasileira é extremamente rica e já virou um chavão falar isto. O que nos falta é reconhecer esta diversidade. Ao não reconhecer esta diversidade jogamos cotidianamente no lixo o que de melhor temos a oferecer. Nos contentamos em ser uma cópia ruim do que é produzido no norte, principalmente na área das artes visuais. Além disso, abrimos mão de discutir nossa realidade, nossos problemas e possíveis soluções. O artista é um intelectual também, tem muito a contribuir no campo da discussão da sociedade com a sua produção, mas geralmente abrimos mão disto por uma eterna discussão da arte e de seus mecanismos, como se a arte estivesse distante da sociedade. Felizmente as novas gerações parecem estar acordando para isto e revendo alguns postulados que já não cabem mais como parâmetros únicos da produção brasileira. Em relação sobre como a diversidade me atinge enquanto artista, bem, isto ocorre o tempo todo. Não se foge de quem se é. Fui criada em um ambiente permeado pelo catolicismo e pelas religiões de origem afro-brasileiras, no caso, a Umbanda. E é claro que isto vai aparecer em obras como a “Parede da Memória”, por exemplo. Então a questão da diversidade aparece direto na produção. Ultimamente tenho pensado também na questão indígena que permeia a sociedade brasileira e que é tão ou mais negada que a negra. No modo como usamos as ervas, uma questão essencial para os indígenas e que se aliou em alguns cultos afro-brasileiros à herança africana, como é o caso da Umbanda. Isto chama muito minha atenção.
Série “Assentamentos”, impressão sobre tecido, linóleo e costura.
TECNOGRAPHY: e sobre a revolução tecnológica? Como ela favorece o artista na hora da criação, da troca de experiência? Você se utiliza de alguma "rede" - seja ela qual for - para ajudar no seu trabalho?
ROSANA PAULINO: A revolução tecnológica é extremamente importante para as/os artistas, ao menos para mim! Não vivo sem internet no momento da criação! Utilizo tudo, redes sociais (onde muitas vezes encontro textos ou questionamentos que vão ajudar na reflexão sobre o que está sendo produzido), flickr, dicas

Monotipia e linóleo sobre tecido.

sobre como usar algum material que eu não conheço direito etc. Penso que hoje em dia a internet é imprescindível no momento em que estamos pesquisando para um trabalho, seja a pesquisa de textos, de imagens... e a gravura, e tenho a gravura como base da minha criação, afinal sou bacharel na área, é provavelmente a mídia mais favorecida por essa revolução tecnológica. As ferramentas digitais se amoldam de forma excepcional à gravura no tocante à reprodutibilidade, manipulação de imagem e mesmo no que diz respeito a um pensamento gráfico no modo de tratar a imagem. Então não tem como não usar.
TECNOGRAPHY: o que você gostaria de ver no campo da arte contemporânea que ainda não viu? Que tipo de discussões estão faltando?
ROSANA PAULINO: Estão faltando várias discussões aqui no Brasil. O meio contemporâneo aqui é muito pequeno, acanhado. Faltam discussões mais aprofundadas sobre gênero, sobre a questão indígena, LGBT, enfim, sobre a diversidade que nos faz humanos. A arte contemporânea brasileira ainda é muito devedora do que se pensa e faz no norte, ainda é muito eurocêntrica, branca e masculina. A própria possibilidade de uma arte afro-brasileira ainda é, em muitos casos, vista como um “mimimi”, como “frescurinha”, como se a cultura negra no Brasil não tivesse especificidades que justificassem uma produção que, muitas vezes, pode assumir aspectos diferenciados e únicos.
TECNOGRAPHY: se você pudesse apontar, qual o legado que gostaria de deixar com a sua arte?
ROSANA PAULINO: Gostaria que as pessoas olhassem para minha obra e reconhecessem a fala daquelas/daqueles que não estiveram no palco principal da produção cultural brasileira. Que a obra leve a discussões sobre o país e que percebamos, através da reflexão, que ser um dos campeões de injustiça social não é uma coisa natural e é possível mudar esta realidade. ★
As lembranças de LUIZ HERMANO se transformam em matéria-prima para a produção artística que permeia os mais de 30 anos de sua vida dedicados a arte. Encruzilhadas de sentimentos são construídas com as próprias memórias afetivas da infância, da terra querida, de cheiros e sabores do passado, mas com os pés bem no presente. Transforma materiais do cotidiano em grandes emaranhados de referências. Transporta para suas obras a intimidade, tecendo em cada expectador novas leituras sobre o que é caro a cada um. Mapeia com cuidado terrenos a serem explorados e traduzidos. Nesta edição a TECNOGRAPHY, traz uma conversa com o artista, que contou sobre o seu processo de criação, suas referências e como lida com as “facilidades” que a tecnologia nos oferece, seja para “arquivar” memórias, registrar momentos, recontar histórias e depois compartilhá-las, seja na arte ou nas redes sociais...
PREAOCA (TERRA NATAL) E SÃO PAULO
Existe uma linha que narra a minha passagem neste mundo. É através do meu passado na Preaoca, no Ceará que ainda na infância tive minhas primeiras experiências estéticas: armava arapucas para caçar preá no mato, costumava brincar de circo e seus personagens, animais e todo esse maravilhamento que futuramente geraram interesse pelo universo da arte. A vida do artista é a própria arte e vice-e-versa. Algumas memórias que tenho da Preaoca no Ceará, foram traduzidas nas minhas aquarelas “Histórias da Preaoca“ – I à X, de 1980, um mundo cheio de fabulações e que também narravam fatos inverossímeis, vividos no isola
linhas e memórias
com Luiz Hermano

“Árvore do Tempo”, Luiz Hermano

mento de uma cidade do interior. Vivo e trabalho na cidade de São Paulo há exatamente 30 anos, o presente é importante para podermos olhar com mais crítica à produção destes 36 anos de trabalho. Conviver com o passado e o presente é poder adquirir a experiência que só o tempo é capaz de mostrar, é poder revisitar uma produção nos mais diferentes recursos, aperfeiçoar as formas de expressão e até mesmo fazer releituras de técnicas antes utilizadas. É através do passado e do presente que podemos estruturar uma produção futura, e isso é extremamente importante na vida de um artista, nós estamos constantemente em pesquisa e estudos, vivendo no presente mas com o olhar atento ao futuro, sem esquecer é claro do passado e de nossas origens.
LUGARES, REFERÊNCIAS e PERTENCIMENTO
Existem lugares que são referências. Eu mesmo já tive em minha produção diferentes inspirações de lugares que fiz residência e visitei. Possuo referências de alguns lugares que me identifico. Lido bem com as situações de memória afetiva. É prazer!
LEMBRANÇAS SÃO COMBUSTÍVEIS PARA A ARTE
As lembranças e os sentimentos também servem para nos definirmos enquanto sujeito. Acredito que quase tudo sirva de combustível para a arte incluindo sentimentos e lembranças.
SOBRE A EXPOSIÇÃO “REDES DE MEMÓRIAS”
Tudo o que acontece em nossas vidas, são interpretados com base em registros passados. Quando a memória encontra em seu arquivo uma cena, situação ou experiência que julga ser similar ou igual à situação vivida no presente, automaticamente considera a mesma, repetimos a fisiologia e consequentemente a mesma emoção que anteriormente foi experimentada. Mas, quando não encontramos absolutamente nada, aproximamos e tomamos como igual ou parecido à experiência e repetimos as mesmas emoções. No entanto, precisamos olhar para a verdade da situação no momento em que acontece, sem interferências do passado para não perdermos a oportunidade de compreendermos o que realmente acontece em nossa frente. De fato, o ser humano é capaz de vivenciar alguma nostalgia, o que é saudável, mas jamais podemos deixar que todas as frustrações nos impeçam de estabelecer nossas atitudes no presente.
“Usina do Tempo” (2003), Luiz Hermano
A REDE DE SIGNIFICADOS DAS OBRAS IMPORTA?
Tudo importa. Absolutamente todos os significados!
ESCULTURAS, TRAMAS, AMARRAÇÕES
A linha está presente em toda a minha produção. Ela iniciou nos desenhos, aquarelas, gravuras, depois nas pinturas, passando pelas instalações, sem esquecer também das esculturas até a produção atual. Como disse anteriormente, existe uma linha que narra a minha passagem neste mundo.
ESCOLHA DOS MATERIAIS
É uma grande pesquisa. Partem das leituras, dos objetos e suas funções, do momento real em que o mundo vive, do consumo e por aí vai… Realizo muitos testes… Desloco o objeto de sua função original e contextualizo dando outro significado… A escolha depende do momento.
O USO DA GEOMETRIA NAS OBRAS
Ela está em praticamente tudo. Aquela velha história dos pontos que acumulados geram uma linha, e por aí vai…
MATERIAL x VIRTUAL: POSSÍVEL?
Sem dúvidas, também é possível. Depende da pesquisa de cada artista. O mundo virtual sempre me fascinou, bem como suas redes, conexões e até mesmo as peças de computadores, que já utilizei em alguns trabalhos. Eu tenho um site tem mais de 10 anos, acredito ser um pioneiro, hoje, com os sites institucionais, as mídias digitais, facilitou o acesso à informação e o convívio virtual através das redes sociais. Encurtou distâncias, aproximou mundos.
“ENREDAMENTOS” VIRTUAIS - INFLUÊNCIA A CRIAÇÃO?
Isso já influencia a arte, sem dúvidas é extremamente importante. E sim, podem e devem ser positivos. Mesmo tendo início no final do século XX, a era digital teve seu aprofundamento neste século, acredito que no futuro mostrará a particularidade do homem na revolução digital.
ARTE CONECTA OU DESCONECTA?
A arte nos conecta com o nosso passado, com o presente e com o nosso futuro. Ela nos desconecta da razão e certeza absoluta de todas as coisas. Será que temos certeza sobre tudo o tempo todo? ★

manus machina
uma introspectiva retrospectiva

Concentrada nos caminhos da moda - ainda que de maneira deliciosamente diletante – logo no princípio de 2015 eu conversava com uma designer de moda portuguesa, que me lançou uma clara ideia sobre o que significa realizar um trabalho realmente apontado para o futuro. Para resumir o papo e o pensamento, que é amplo, numa só palavra, eu diria: interdisciplinaridade ou... redes.
O Consumer Eletronics Show (CES), importante evento do setor de bens de consumo eletrônicos, que acontece anualmente em Las Vegas, EUA, inaugurou 2015 espalhando aos quatro ventos que esse seria o ano das wearables. A Intel faria o lançamento do seu chip Curie, um módulo programável pequeníssimo, do tamanho de um botão, que reduziria o volume do hadware presente nas roupas e acessórios inteligentes, desse momento em diante.
Desde que os estilistas começaram a se interessar em embutir funcionalidades outras nas roupas, além das óbvias, foi aberto um caminho sem volta para resultados que seriam produzidos através das redes de pensamentos, de habilidades, de disciplinas. E de pessoas. Essa maravilhosa configuração dos processos e saberes do século XXI, aquela tal interdisciplinaridade sobre a qual conversávamos eu e Alexandra Cabral, a designer portuguesa.
Pensei sobre a moda e seu eterno retorno às décadas passadas, através de estilos étnicos, góticos, minimalistas, maximalistas, românticos ou esportivos... Com alguma pitada de novidade, certo, mas ainda sem experimentar algo totalmente novo. É a moda do passado, que recorre à ele, que orbita nele. Coisas de um mercado que precisa manter-se na zona de conforto da aceitação do consumidor final. Esse lugar-comum, encontrado a cada temporada, pelos escrevinhadores das modas do mundo.
Li Edelkoort, uma das trend forecasters mais respeitadas atualmente, publicou também nesse ano seu Anti_Fashion Manifesto, elencando as razões pelas quais acredita que o sistema da moda, como o conhecemos, é obsoleto. Como se pode notar, 2015 realmente foi um ano agitado para quem ainda insiste em acreditar que esse fast fashion nada forward, guia do mundo através do retrovisor, vai conseguir sustentar o mercado.
E as grandes maisons já estão sofrendo duramente com esse sistema. Scusami, Mr. Slimane: Saint Laurent Paris é a nova Zara, só que com preços astronômicos. Nessa dança das cadeiras da alta moda, em 2015, sambaram Raf Simons, da Dior, e Alber Elbaz, da Lanvin. Mas quem consegue fazer um trabalho apurado com seis coleções ao ano? Eles, nomes maiores que as casas que levavam, preferiram abster-se desse jogo sujo que o fashion business selvagem tem imposto aos seus criadores. Soa muito dramático? É o que está tendo.
Enquanto isso, descolados do capital, ou pelo menos, não só concentrados nele, nos laboratórios que cruzam moda, tecnologia, design e ciência, mundo afora, pensamentos voam além dos bureaus de tendência de cores, tecidos e do comportamento de consumo. Na verdade, são eles que fazem a tendência: não aquela que você vai encontrar imediatamente nas araras da sua loja favorita. Mas a que vai dirigir o zeitgeist do mundo todo, daqui a 10, 50, 100 anos.
Uma configuração multidisciplinar de trabalhos pode ser realizada entre pessoas com diferentes skills e conhecimentos, e Iris Van Herpen é um belo exemplo. O “staff” da designer de moda holandesa é formado por arquitetos, programadores, engenheiros. Seu estilo não é feito só com agulha e linha. É o exemplo de pessoa que, ainda na faculdade, não teria medo de cruzar o campus e buscar novidades e parceirias em outros centros.
Como Danit Peleg. Essa jovem israelense apresentou como projeto de conclusão do seu curso de moda uma coleção totalmente impressa em 3D, utilizando uma impressora caseira carregada com filamentos sintéticos maleáveis. E minha aposta para o futuro próximo, nesse cenário? Makers gonna make. O 3D é hot ticket para a moda, sim, e saber uma linguagem de programação vai ser parte do pacote do profissional desse milênio. Aquele que queira fazer uma moda com a cara do futuro.
Nessa seara, é bom observar o trabalho do casal Nervous System, cuja micro rede de conhecimentos surgiu com uma estética toda nova para a moda. Eles não são estilistas. São designers, programadores, que lançam mão do estudo da ciência e da natureza e utilizam a moda como plataforma para os seus resultados. Um deles? Vestidos impressos inteiramente em 3D – no caso de Danit foram “placas”, posteriormente justapostas –, e que hoje se encontram em museus como o Cooper Hewitt Smithsonian Design ou o MoMa, ambos em Nova York.
E é do MET que chega a notícia de que a principal exposição arte-moda, a mais movimentada de 2016, tem como tema “Manus X Machina: a moda na era da tecnologia”. De 5 de maio a 14 de agosto será apresentada uma mostra que irá explorar o impacto das novas tecnologias na moda, e como os designers estão reconcilando o handmade com o “machine-made”, na alta costura e no ready-to-wear.
A exposição é patrocinada pela Apple e aí já abrimos de antemão uma nova rede: aquela que é conectada diretamente com os interesses, vejam só, do mercado: a gigante das tecnologias quer saber como explorar direitinho os confins da moda. Ora, direi, apenas através do desejo. Ele, que apesar de todos os futurismo e desapegos do business, continuará a existir, vaticinam os trendhunters.
Eu, por aqui, sigo certa de uma coisa: humanos serão humanos até o fim dos tempos. Seus afetos estão em constante conflito e o desejo é apenas um deles, concordando com os o que os especialistas em tendências dizem. Noves fora, o universo do conhecimento em redes pode, inclusive, fazer com que esse estímulo seja aplicado às novas tecnologias aplicadas à moda. Como o que a Apple está promovendo. Como o que os criadores do novo pensamento, entre a mão e a máquina, estão construindo. ★
“A Rendeira” (1669/1670), óleo sobre tela - Johannes Vermeer

contradições, ambiguidades e metáforas
com Paula Rosa

Para a designer e artista visual PAULA ROSA, nascida em Lisboa, Portugal, não existe equação exata para a criação. Como num soterramento de imagens, leituras e buscas pessoais, cria novos cenários alinhados com a confusão dos tempos de hoje e com uma certa dose de sonho - ou seria pesadelo? Mulheres em ruínas, observadores incansáveis, janelas e portas escancaradas para uma nova era. Para onde vamos? Resposta ainda a ser encontrada. A certeza que temos é a de que com os adventos das “novas” comunicações, a TECNOGRAPHY tem a graça de poder se aventurar pela REDE e travar conversas inspiradoras, descobrindo além das fronteiras geográficas reais, novas representações, dinâmicas, metafóricas e mordazes.
Entre muitas linhas, descobrimos as conexões estabelecidas por PAULA para criar imagens que pautam as suas descobertas e ligações que constrói um trabalho livre e autoral em paralelo com a sua outra atividade, o design. Afinal, não somos uma só persona.
O TRABALHO NAS ARTES VISUAIS
Há já vários anos que reparto a minha actividade pelas artes visuais e pelo design industrial. A experiência da liberdade associada à dimensão expressiva, subjectiva, por um lado, versus a disciplina e o rigor que exige a metodologia projectual. Tem sido, portanto, um percurso marcado por uma certa dualidade, uma divisão por campos aparentemente opostos, que exigem posturas e disponibilidades diferentes, mas que frequentemente se intersectam e acabam por se reflectir no meu trabalho como um todo.
“HumanDK”
Cedo se tornou claro para mim que a arte era um “modo” privilegiado de me conectar com o meu “self”, com todo o potencial energético da psique, com os mistérios do subconsciente mas também com o mundo que me rodeia. De um modo geral, o meu trabalho nas artes visuais é motivado, acima de tudo, por uma busca incessante por auto-conhecimento, mas também pelo conhecimento em geral e pela Humanidade. A temática, por assim dizer, emana da minha procura obsessiva por respostas, mas sobretudo das minhas interrogações, preocupações e das abordagens que considero fundamentais e urgentes.
É um trabalho bastante conceptual, aberto, em permanente actualização e evolução, à semelhança de mim própria enquanto ser humano, como não poderia deixar de ser.
AINDA LONGE DAS DEFINIÇÕES
Ainda que considere que o modus-operandi esteja longe de definir eficazmente o meu trabalho, para realizá-lo, o que tenho feito ao longo de quatro décadas, recorro a uma multiplicidade de técnicas e ferramentas, desde as tradicionais às mais recentes tecnologias. Deste ponto de vista, é um trabalho bastante variado. Tenho uma tendência para “subverter” a função óbvia e imediata das ferramentas e testo frequentemente os seus limites, pratico combinações técnicas bastante improváveis e tenho mesmo fabricado algumas das ferramentas que utilizo.
CENAS SURREAIS, REFLEXÕES E PARADOXOS
A Humanidade, a sua essência, e enfim, a sua condição, sempre me fascinaram. Apaixonei-me, desde muito cedo, e desconfio que de modo irreversível, pelos mistérios da mente e, consequentemente, pelos amplos e diversificados campos das Ciências Humanas, de Comportamento e Sociais, especificamente pela Psicologia, Sociologia e Filosofia. Leio bastante, mas observo e reflicto ainda mais. O Homem, nas suas múltiplas dimensões é tema central e recorrente no meu trabalho, que encaro como um processo capaz de “exorcizar” as minhas interrogações, cristalizar as minhas reflexões e, enfim, revelar aquilo que eu sou. E eu “sou” e “tenho sido”, também, num cenário marcado pela prevalência daqueles temores ancestrais, como o medo da morte por exemplo, arrastados para tempos de aparente cataclismo das sociedades, expostos a ventos fortes que são prenúncio de um apocalipse auto-induzido. Uma abordagem bipolar, paradoxalmente distópica e utópica.

“Projecto Cavaquinho”
A CRIAÇÃO DAS IMAGENS
A transferência de tudo para imagens é uma dinâmica fascinante que, felizmente, acontece sem que tenha que perceber completamente como nem porquê. As associações acontecem, num plano praticamente insondável, e explodem em formas, analogias, contradições, ambiguidades, exactidões, alegorias, metáforas e tudo o que de aleatório ou estratégico advier num dado momento.
Quase sempre, é uma revelação para mim própria, o que faz com que frequentemente me deixe seduzir pela imagem “terminada” e “mergulhe” na sua interpretação, na interpretação do meu ser. A criação artística como os sonhos parece ter a capacidade de nos proporcionar um conhecimento único de nós próprios, que, de outro modo, permaneceria na mais completa escuridão. É um processo bem mais fácil, mas nem sempre agradável, de ser vivenciado do que propriamente traduzido por palavras.
LIMITES? FRONTEIRAS?
Uma construção, uma composição, passa por constantes tomadas de decisões, às quais não pode ficar alheia a escolha das técnicas, das ferramentas e do modo de as utilizar e até de as transcender.
Recorro, por norma, às técnicas e ferramentas que creio servirem melhor o meu propósito num determinado momento e para um determinado trabalho. Actualmente, tenho utilizado bastante técnicas mistas digitais. Componho em Photoshop, com fragmentos de imagens fotográficas, pintura e desenho, que realizo em suporte digital ou a carvão, grafite e tinta-da-china sobre uma variedade de suportes. Tenho incorporado também elementos que resultam da digitalização directa, de fotogramas, fotografia analógica e pin-hole dos mais variados objectos, fragmentos de objectos, cenários e texturas. Muitas vezes, intervenho plasticamente sobre as superfícies impressas e volto a digitalizá-las e trabalhá-las em Photoshop. Tenho incorporado imagens fractais, gráficos vectoriais, 3D, som e movimento. Há toda uma dinâmica no frenético acto de criar que nos conduz também a explorar uma série de possibilidades e a transcender tudo. A existir uma regra, seria a de não me impor quaisquer limites. A existir um limite, seria, inevitavelmente, a excepção à regra.
INFLUÊNCIAS E MERGULHOS CRIATIVOS
Falar de “influências visuais” implica, enfim, ser capaz de estabelecer uma relação com algo que existe ou que foi criado, normalmente por alguém, apreendido, interpretado, muitas vezes distorcido, metamorfoseado, acrescentado. Implica também compreender que, inevitavelmente, somos influenciados por tudo o que nos rodeia, quer queiramos ou não, quer tenhamos ou não consciência disso. A influência dá-se, muitas vezes, por mecanismos inconscientes e subterrâneos, se quisermos recorrer a uma terminologia psicanalítica. A verdade é que quando estamos “mergulhados” em processos criativos raramente nos perdemos nestas considerações. Acresce o facto de sermos “bombardeados” visualmente com quantidades de informação sem precedentes. Com o possível distanciamento e alguma dificuldade, creio que posso afirmar que as minhas influências visuais vêm de tudo aquilo que é capaz de atrair a minha atenção (se não também do que é capaz de me gerar indiferença), material ou imaterial. Tudo mesmo, sem excepção.Tomo deliberadamente opções estéticas no meu trabalho e recorro a determinadas linguagens, não por acaso. São sempre elementos que utilizo, tal como as ferramentas, de modo a servir uma intenção, e não como um fim em si mesmas. Se elimino a cor, por exemplo, é porque a considero demasiado absorvente e distractiva no universo dos conceitos. A sobriedade e clareza com que muitas vezes me “falou” uma boa fotografia a preto e branco (e foram muitas vezes) talvez tenham delineado o trajecto que conduziu o meu trabalho a um conjunto de características visuais que ele apresenta hoje. Amanhã será provavelmente outra coisa, porque a experiência é obviamente contínua.
CONEXÕES: DESIGN x ARTE
Tenho formação académica em vários ramos do design, nomeadamente em design industrial, de espaços, gráfico e de equipamento pedagógico. A minha formação artística é também fruto de aprendizagem académica mas é sobretudo pessoal, autodidata, e contínua. Não gosto e não posso misturar as coisas porque considero que existem diferenças importantes no modo como me predisponho e posiciono em cada uma delas, na metodologia, na finalidade. Considerando a minha actividade como um todo, as coisas intersectam-se inúmeras vezes e cada uma beneficia do conhecimento proveniente da outra. Porém, também divergem e são capazes de se colocar em campos quase opostos. Existem certos ramos do Design que estarão bem mais próximos da arte do que aqueles em que tenho desenvolvido trabalho. Actualmente, há formas de arte que são processos completamente indiferenciáveis do design. É toda uma nova ordem que emerge da abstracção contemporânea dos softwares, da tecnologia em geral, e que parece culminar numa espécie de fusão de tudo. Vivemos ainda, contudo, tempos de transição, e damos por nós com um pé no futuro e outro lá atrás, atolado no lamaçal das tradições. Parece-me seguro afirmar que Arte e Design vêem a sua definição em necessidade de permanente actualização, pelo facto dos seus limites serem frequentemente transpostos, em expansão, como é, aliás, característica dos universos.
OS DIAS ABSTRATOS DO HOJE E DO AMANHÃ
Parece existir um sentido que aponta para a convergência, fruto dos processos tecnológicos, da consequente partilha dos meios de comunicação e produtivos e da sua disponibilidade na forma digital, quer para designers, quer para artistas. À medida que assistimos a um declínio do mundo material, a arte torna-se crescentemente participativa e interactiva e o campo de actuação do design expande-se para além das exigências da funcionalidade ligada à materialidade dos objectos. Neste contexto, quer a acção do designer, quer a acção do artista sobre o mundo é menos física e mais abstracta e comunicacional. No entanto, há diferenças que continuam por diluir. A discussão tem-se arrastado no tempo e manter-se-á porque, quer “arte”, quer “design” carecem de uma definição definitiva. Na realidade, não podem tê-la porque estão em constante mutação e as suas fronteiras em permanente expansão.
NOVOS MEIOS. NOVAS REDES. NOVOS OLHARES
A arte sempre reflectiu o artista e o tempo em que ele viveu. O facto é que passámos de uma cultura local para uma cibercultura, com todas as transformações que daí advêm. O modo como percepcionamos o tempo, o espaço, enfim, o mundo mudou radicalmente. A comunicação à escala global coloca-nos em contacto com a diversidade, com uma multiplicidade de disciplinas e culturas que, ao promoverem a combinação de conceitos, podem resultar em ideias extraordinárias - inspiração e criatividade. O contacto com pessoas que estão geograficamente distantes, muitas vezes inter-geracional, alarga o horizonte dos artistas, abre-lhes novas perspectivas e aumenta o conhecimento pessoal. Creio que todos nós seríamos pessoas diferentes se não tivéssemos tido as experiências que tivemos, conhecido as pessoas que conhecemos, aprendido o que aprendemos.
EXPERIÊNCIAS DA SOLIDÃO
Sim, creio que acontece, na medida em que o trabalho é aquilo que eu sou e eu sou as experiências que vivo, o que inclui as conversas que tenho. Acontece, mas não imediatamente. Dou por mim a separar naturalmente o tempo em que estou activa na internet e o tempo em que estou a criar. No caso do meu trabalho visual, realmente preciso de um certo isolamento para desenvolvê-lo. Como diria Fernando Pessoa “Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho”. É um pouco isso que se passa comigo relativamente ao meu trabalho. É um processo muito introspectivo e solitário que, não raramente, me faz esquecer o tempo, até para me alimentar ou dormir, por exemplo. Não há tempo nem predisposição para as redes sociais, online ou off-line. Creio que familiares e amigos aprenderam a entender isso e não levam a mal quando eu “desligo” por dias ou semanas. Considero que há um período para “absorver”, um para digerir e outro para sintetizar.
A TROCA
A colaboração, de que tanto se fala, creio que existe sob diferentes formas e a diferentes níveis. Como designer, dada a multidisciplinaridade que a actividade exige, sempre tive essa experiência. No caso da minha pintura, por exemplo, tenho recebido bastantes convites para colaborações artísticas, nomeadamente exquisite-corpses. Tenho participado em alguns, reconheço que a experiência é sempre enriquecedora, mas confesso que não é muito confortável pelos limites que impõe ao tipo de trabalho que faço nessa área. Um tipo de projectos colectivos em que tenho participado, mais frequentemente, traduz-se num modo de colaboração em que cedo as minhas imagens, terminadas, para integrarem um projecto mais amplo, envolvendo o trabalho de outras pessoas, outros meios de exposição e outras formas de arte, projectos colectivos por natureza. Tenho colaborado com muitos artistas de vídeo, realizadores de cinema, músicos e editoras. Tenho desenvolvido trabalho colectivo, na verdadeira dimensão da palavra, sobretudo em vídeo, para companhias de teatro, Institutos de Ciência e uma série de associações ligadas à cultura.
A CONECTIVIDADE E O BOMBARDEIO VISUAL
É um facto que as imagens nunca se fizeram tão presentes e tão imperativas. A linguagem visual é a linguagem actual por excelência, apresentando

“Aesthetics of Abdication”

crescente significância na sociedade contemporânea. Somos bombardeados com imagens em praticamente todos os ambientes em que nos movemos e, neste sentido, navegar na internet não é muito diferente de caminhar numa grande cidade.
A RAPIDEZ E OS ESTÍMULOS DA TECNOLOGIA
O acelerado desenvolvimento das mídias, aliado à internet e alimentado por um certo deslumbramento perante o potencial tecnológico têm conduzido a uma proliferação de imagens sem precedentes, o que obriga a uma permanente triagem e a um esforço acrescido da percepção. Se isso resulta numa banalização das artes visuais, francamente, não sei. Contudo, não é difícil perceber que, perante a quantidade de informação visual disponível, tendemos a tornar-nos muito menos analíticos e, neste contexto, sim, poderemos falar de uma certa banalização das artes visuais. Por outro lado, poderemos estar perante um fenómeno que trará algo completamente novo, que talvez nos obrigue, uma vez mais, ao debate estético e à revisão do próprio conceito de arte. Parece existir um processo que conduz à diluição das diferenças entre o artista dito profissional e o artista amador. A conectividade, especificamente através da internet, baralhou completamente o modo como criamos, difundimos, consumimos e percebemos a arte. Se, por um lado, assistimos a uma uniformização entediante, por outro, a proliferação de imagens também pode ser estimulante e fazer sobressair o que realmente consideramos que tem qualidade e mesmo revelar novos talentos, que enriquecerão o mundo das artes visuais.
O FUTURO CHEGOU?
O futuro, diria o poeta, “como em qualquer história inacabada, é um proeminente ponto de interrogação”. Difícil de prever mas, no curto prazo, relativamente fácil de imaginar, sobretudo porque à velocidade a que os avanços tecnológicos acontecem na actualidade, o futuro é já no próximo minuto.Parece óbvio que o futuro da arte e o futuro da internet estão interligados, estando a segunda a revolucionar completamente a primeira e a colocar-lhe desafios constantes. Mas o inverso, também me parece verdadeiro. De facto, expandem-se, juntas, e alimentam-se uma da outra na procura constante por novas soluções e novos modos de criar.
ESTAMOS LIGADOS POR REDES
Assistimos já, a uma fusão entre arte e design, a uma completa fusão das artes entre si e ao surgimento de formas de arte e design que são completamente novas. Estas transformações são possibilitadas pelos avanços da tecnologia, mas também pelo modo mais ou menos criativo com que nos relacionamos com ela. Acredito que o futuro da arte e do design dependerá muito do modo como venhamos a gerir esta relação. Porque quem cria tem uma espécie de curiosidade apaixonada por coisas novas, creio que assistiremos a uma liberdade cada vez maior nas escolhas, que resultará na proliferação de novas linguagens visuais (imateriais, telemáticas, holográficas, etc.), em contextos amplos, interactivos, crescentemente desafiadoras da tradição, dos nossos próprios conceitos, das nossas expectativas e crescentemente focadas nas interacções que se estabelecem entre os membros de uma rede. ★
luzes e incursões no real
Stephen Antonakos
A arte tem se proposto a forçar limites. E esses limites não estão restritos somente ao campo da criação ou inspiração, se preferir. Os limites são forçados também quando se extrapola as formas “convencionais” de suas representações. A maneira como os ímpetos artísticos estão representados dizem muito sobre o criador da obra. E aqui, podemos citar o artista STEPHEN ANTONAKOS, que ao longo de sua vida produziu trabalhos que rompiam com os suportes convencionais e alcançaram novas proposições. No século XX, especialmente, os avanços tecnológicos nos lançaram em direção a novas formas de representação, pincéis e telas, já não suportavam a arte e as fronteiras foram restabelecidas. Sob luz difusa, como uma névoa, os contornos nítidos renascentistas que tanto orgulharam a humanidade já não se faziam mais necessários.
Luzes, sons, fotografia, vídeo, performances, tudo poderia - e foi - incluído no círculo artítisco. Engenharia, arquitetura, ciência e computação, foram assimilados num novo contexto da arte moderna e replicada na contemporânea. A apropriação do uso da tecnologia por artistas, ofereceram aos espectadores uma viagem ao futuro, que ironicamente “vivemos” hoje. Aplicativos, conexões e envio de dados via satélites podem ser incorporados e digeridos por nós, quase que organicamente. Quem diria que algoritmos matemáticos pudessem formar imagens numa tela brilhante, abastecida por bateria e conectada com milhares de pessoas ao redor do mundo?

“Arrival" (2008), Stephen Antonakos
por A. DANIEL
Mas voltando no tempo, como num filme de ficção científica, mais precisamente na década de 1960. Podemos então, perceber que o mundo era invadido pela contra-cultura. A vanguarda inundava as cabeças mais criativas e no campo das artes, novas formas de enxergar questões políticas e sociais passaram a ser potencializadas e discutidas.
Novas redes entre criação e representação se estabeleceram. E aqui podemos voltar ao nome de Stephen Antonakos, nascido em uma pequena aldeia nas montanhas da Grécia, próximo de Esparta, mas que, aos quatro anos mudou-se com a família para Nova York. Nos EUA frequentou escolas de arte e ciências e começou sua vida profissional como ilustrador publicitário. Mas foi a partir do início dos Anos 60 que ele produziu objetos de arte. Como num emaranhado, aplicava em travesseiros materiais variados como tecidos, metais, costurados por textos. No entanto foi a palavra “Dream” (Sonho em português), escrita em neon que inaugurou o estilo pelo qual ficaria mundialmente famoso.
Instalações, intervenções e objetos fizeram parte do seu repertório de criação. Linhas fluídas, o purismo e as cores vibrantes eram os alicerces de Antonakos na composições de suas obras. As proporções variavam, poderiam caber em uma parede branca de uma famosa galeria na Europa ou simplesmente ser projetada para estar fixada em uma fachada de um prédio despretensioso de uma capital mundial.
"Neon for Paris" (1983), Exposição "Electra", Museu de Arte Moderna de Paris - Stephen Antonakos.


As intenções, as provocações deste artista passavam pelas proporções das obras e pelo sentido dado a elas nos locais que estavam expostas. Antonakos costumava definir a sua arte como “coisas reais em espaços reais". Porém, as formas iluminadas, nem por um momento podem nos dar uma definição exata de tempo e espaço. Há uma ilusão, mesmo tendo bases concretas da geometria. O que existe é uma espiral destes tempos, os quais luminosos e formas básicas, nos colocam em contato com o que esperávamos encontrar no futuro. Estaríamos livres ou presos em conceitos?
Stephen faleceu em 2009, aos 86 anos, mas deixou uma série de conexões, as quais reverberam como num cintilar destes tempos. No seu acervo ainda existem uma série de desenhos, pinturas, estudos que mostram a sua multidisciplinaridade. Criava objetos, como pacotes de encomendas a serem enviadas para destinatários conhecidos, amigos de uma vida longa. Seriam cápsulas do tempo? Ou recordações de si mesmo? Também produziu livros de artista que recentemente foram reunidos e expostos com uma série de trabalhos, numa exposição que percorreu cidades dos EUA, Europa e Oriente.
Assim se estabelece uma relação entre a subjetividade de um traçado no papel até a projeção de tubos curvados, nos quais domina a luz, que se desdobra em novos desenhos cinéticos. Então, compartilhando noções de espaço e experiências visuais desconstruídas por proporções elevadas de escala e cores saturadas. Como num portal, Stephen Antonakos trabalhava entre a exatidão de um mundo real, mas anunciava uma estética subliminar, a qual incorporamos há tempos e que cultuamos mesmo que sem perceber. Como as mariposas, de certa forma nossos olhos seguem o menor rastro luminoso, somos atraídos por luz e forma. Não podemos negar. ★
project light echoes
mapeamento feito com luz: Aaron Koblin & Ben Tricklebank
por ALEXANDRE RESE


Arte e tecnologia. Palavras bastante usadas e associadas ao nosso tempo. Os campos de atuação fomentam novas buscas. Onde antes havia profunda subjetividade, hoje, as subvertidas representações nascem através de códigos matemáticos, numa sequência lógica e unânime de pontos multiplicados. O automatizado, concentrado na assepsia pós-tecnológica, revela ainda os questionamentos mais simples e antigos dos homens: Quem somos? Para onde estamos a caminhar? No que nos tornamos? E acrescenta-se ainda: Do que somos feitos? De água? Células? Códigos genéticos? Ou de ecos e luzes? O projeto “LIGHT ECHOES” percorre por estradas de ferro sinuosas e apresenta um desenrolar de imagens projetadas a partir de recursos que preenchem vazios com sobreposições, camadas, malhas e palavras, elementos que não são matéria, mas existem tal qual os impalpáveis sentimentos.
O projeto é o resultado do trabalho da dupla Aaron Koblin e Ben Tricklebank e está na primeira fase. Como em uma viagem de trem, percorreram os trilhos do interior dos EUA e com o auxílio de projetores potentes criaram experiências visuais, registradas em vídeo e fotografias por Tricklebank. A Koblin, coube a tarefa de desenvolver os minuciosos códigos de programação que possibilitaram a formação das imagens. Para Koblin, o projeto se traduz em “traços de luz que são transmitidos para paisagens, através de um laser a bordo de um trem em movimento. O espaço e o tempo são recolhidos em imagens que documentam os impulsos de dados em forma de luz que refletem fora da terra e da matéria”.
Manipular e transformar o mundo real, é isso que “Light Echoes” nos oferece num instante, num frame do vídeo, numa imagem estática de fotografia em superexposição. A imersão em novas dimensões, sem que que um portal mágico se abra a nossa frente, só é possível, afinal, porque recriamos mundos nessa nova realidade compartilhada, conectada e com limites inexplorados.
A complexidade na criação de imagens a partir do universo virtual parece não ser problema. As limitações não se sobrepõem as cores, formas ou palavras projetáveis. Estes elementos, tão presentes, que nos cercam e que estão nos emaranhados dos nossos signos visuais ganham novos espaços, novas proporções. Movimento, mudança e inconstâncias luminosas fazem os olhos mapearem paisagens construídas com rigidez e em suas formas se transformarem. A natureza, que não escapa do cenário também compõe o jogo de redescobrimento de espaços que são julgados banais e comuns, mas que sabe-se, não são e nunca o foram para os artistas.
Os trilhos feitos para trens, assumem mutações. Que bom se tudo assim pudesse se transfigurar. Se de dia os dormentes são braços que sustentam uma rede de transportes que levam e trazem toneladas de cargas, ao cair da noite interpretam um novo protagonismo que agora se sobressalta à leveza da luz. Somos voláteis e nos comovemos com as possibilidades. As tramas programadas, revestem os trilhos são como um tapete a céu aberto e que amortecem os mistérios desta jornada. ★
De cidade/ city/ cité a Babel
por RAUL ANTELO

De cidade/city/cité a Babel Raul Antelo O historiador cultural americano Carl Schorske chamou nossa atenção, nos anos 80, para a configuração do espaço urbano como problema teórico-político. A despeito de suas diferenças, Voltaire, Adam Smith ou Fichte coincidiam em que a cidade era a sede das virtudes civilizatórias, argumentava Schorske, ao passo que, para o mórbido olhar de um William Blake, no entanto, a cidade - e o exemplo característico é sempre Londres, a da biopolítica alegoria de Jeckyl e Hyde - não passava do território por excelência dos vícios e da degradação. É só com Baudelaire, entretanto, que esse caráter bifronte se condensaria, não por esquecimento, mas por abandono, na visão de Paris como um espaço situado para além do bem e do mal, um hic et nunc eterno, cujo conteúdo, embora transitório, tornava essa mesma transitoriedade permanente(1). Daí deriva, com efeito, a idéia de uma cidade disseminada(2).
Schorske estava de fato preocupado em traçar um percurso evolutivo da idéia de cidade européia, de Voltaire a Spengler, mas cabe-nos contudo agora esboçar uma genealogia suplementar, a da gênese da cidade euro-atlântica, de Nietzsche a Derrida. Digamos, então, para início de conversa, que essa outra configuração urbana, a da cidade disseminada, configura uma rede incessante de deslocamentos e usos, não só do próprio e do alheio, mas também do público e do privado, em que toda noção de origem surge como plenamente ilusória
já que, para sua cabal manifestação, são indispensáveis os forasteiros. São eles, através do nomadismo, que mostram o trânsito ininterrupto da natureza à cultura e, além do mais, de uma a outra cultura, i.e. de técnica a técnica, sempre exibindo o enigma de um percurso sem fundação nem orientação final: uma circulação que não cessa de atiçar mas, ao mesmo tempo, de contrariar também a necessidade de dominar o espaço e mesmo a reivindicação irrecusável quanto à justa partilha desse âmbito, para rechaçar, enfim, toda apropriação comunitária irreversível.
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“Roda de Bicicleta” (1913) - Marcel Duchamp
emaranhado de emoções
por MARTHA GAMA
O movimento contido, cerceado. O cansaço da tentativa inútil. A rigidez e tenacidade do que aprisiona o coração. Repetir cada gesto, cada querer. Um grito tão fundo que chega ao nada; ao vazio. A trilha alvo do desejo possui faces desordenadas, misturadas de forma sutil, alertando para a necessidade de uma reestruturação sem pretexto, e ao mesmo tempo, o reconhecimento da onipresença do que aniquila. Aprisionados nos sujeitamos; em doses lentas vivenciamos o desconstruir dos desejos legítimos. Reunir forças e recomeçar.
Acreditar na possibilidade de que tudo possa ser diferente. É preciso cuidar do que nos impulsiona. Mentes podem ser territórios inóspitos; criadores de ilusão, mas também nos dão asas que poderão nos levar para além das fronteiras da letargia. Por vezes, nossos demônios, esperam apenas pelo momento em que quebraremos as correntes e conseguiremos caminhar sem subterfúgios, verbalizando que, finalmente, reconhecemos que eles estão ali, mas que nós seguiremos a despeito disso.
Quando Frida Kahlo declara: “Pensavam que eu era uma surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade.”, ela abre a porta tão dilacerante da assimilação da dor. Aprisionada fisicamente por inúmeras limitações e vivendo com o coração a sangrar, cria caminhos que possibilitaram um entendimento do quanto complexa pode ser a existência de alguém, mas que isso não afasta a compreensão de que o enfrentamento é necessário. Ela escolheu a arte para explicitar as suas vicissitudes e nos ofereceu a chance de encontrarmos sentido para nossas próprias vidas dentro de nós mesmos. A vitória não está no momento da glória, e sim na escolha progressiva, que dá continuidade ao processo evolutivo.

“A Persistência da Memória” (1931), óleo sobre tela - Salvador Dalí
A estagnação é perda de tempo. O passado deve ficar no passado. E o presente deve se tornar uma projeção de possibilidades reais de mudanças; o possível, e que fique bem entendido: aquilo que pode ter várias faces, dependendo da perspectiva de cada um. Como um objetivo que se apresente sem rigidez.
Podemos nos inspirar na pintura célebre de Salvador Dalí: “A Persistência da Memória”. Dalí não aceitava a ideia de um “tempo” dominador, muito pelo contrário; o retratava como algo flexível, que poderia ser usado a nosso favor. Criou uma ponte entre a relevância do poder das vontades e a inexorabilidade temporal. Experiências inesperadas traçam novas linhas para a chamada “realidade” e plantam questionamentos sobre o que preservamos em nossas mentes.
A arte onírica de Dali nos convida à liberdade, ao prazer, a permitir que nossas emoções ocupem seu espaço dentro de uma realidade desconstituída de qualquer tipo de dominação. É assim que conseguiremos ampliar nossa percepção e nos preparar para todo tipo de enredamento que surja no nosso caminho. Exemplo? A manipulação alheia.
É devastador constatar do que o outro é capaz de fazer para justificar suas fraquezas, projetando em quem está próximo a culpa pela recusa de não ter o enfrentamento necessário e rever suas próprias atitudes e muitas vezes, a falta delas. Então, depois de passado o torpor que a dor traz, admitir e reconhecer que havia um jogo sendo construído para que o desfecho beneficiasse ao manipulador, e para que diante de um resultado negativo, ele tivesse a chance de permanecer na posição de vítima, torna tudo mais difícil. Mas nesse momento, o entendimento chega propiciando a compreensão do quanto para alguns é difícil aceitar suas limitações, tornando-os capazes de agir com perversidade, levando dor e decepção por onde passam. A revelação: aquele que tanto se esforça para aprisionar; é um aprisionado. Através de Hamlet, William Shakespeare, nos faz mergulhar na necessidade de parecermos felizes e que tudo que vivenciamos tenham moldes perfeitos.
A dor ensina e o sofrimento não é para ser excluído, e não me parece que deva ser revestimento de um terror continuado, mas ela também não legitima um posicionamento alienado e fútil. Hamlet vive as consequências da escolha pela consciência. Assume suas dores. Não se esquiva da solidão criando personagens que satisfaçam aos outros. Luta pelo direito de viver com verdade, ou seja, numa realidade não fantasiosa.
Talvez possamos compreender o porquê de comportamentos repetitivos. O porquê de vivermos tempos escravizados pela necessidade de expor nossas vidas, como modelos de alegria intensa e permanente. Por que não nos bastamos? Por que não podemos nos sentir miseráveis, vez por outra? Frida, Dalí e Shakespeare, nos oferecem a oportunidade de refletir que podemos vivenciar o coletivo compreendendo que o encontro não deve ser um processo de anulação. Não nos tornamos um quando estamos juntos. A soma só surge com o que é parte. O que viabiliza as relações humanas é a manutenção da individualidade. É preciso coragem para reconhecer que muitas vezes o nosso aprisionamento é anterior. Ele começa quando nos deixamos acorrentar pela ideia de que a nossa felicidade é responsabilidade do outro, e nos acomodamos de tal forma, que não somos capazes de compreender que só nós sabemos o que realmente nos faz felizes.
Quando cortamos nossas asas e nos autoflagelamos sem piedade, mergulhamos na crença ilusória que ser mártir é ser amado eternamente. Quando fazemos do nosso dia a dia uma escala de acontecimentos folclóricos, abrimos mão de gerir a nossa própria história.
A insistência oferece o caminho. Repentinamente, a liberdade poderá acontecer. Respirar profundamente e sem pressa. O ir sempre foi o objetivo, mas agora a espera é algo natural, porque a consciência traz a capacidade de aceitar o que está por vir. O tempo de restrições não foi de cegueira. Lutas, perdas incontáveis, mas há a transformação em meio aos destroços emocionais. Isso é o exercício simples e natural de estar vivo em toda a sua plenitude.
O que poderá nos levar para o desejo de atravessar a linha tênue da realização pessoal; chegar ao que interessa: quem realmente somos.
Haverá momentos em que a ligação de almas amarguradas, que como teias puídas, se revelarão desinteressantes e desgastadas. Mas também haverá o instante de aceitar o que só a liberdade é capaz de oferecer: desprendimento. Atirar-se sem seguro. Vento no rosto. Ousadia e renascimento. Momento de aceitar o risco de validar uma existência despretensiosa. ★
TEIAS ・ MALHAS ・ CONEXÕES ・ TROCAS ・ EXPERIÊNCIAS ・ REDES

ed. REDES
# 03
(2015-2016)
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agradecimentos:
A. Daniel
Rosana Paulino
Paula Rosa
Raul Antelo
Davi Pessoa c. Barbosa
Diego Martins
Luiz Hermano
Coletivo Opavivará
Raquel Gaudard
Martha Gama
Sonia Mara Viero
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criadores
Alexandre Rese:
Editor e diretor de arte
Iriê Salomão Jr.:
Editor
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expediente:. este é um projeto experimental, um “ensaio” reflexivo e visual, baseado nas novas formas de disseminação e interação através da tecnologia:. № 3 - REDES:. distribuição/ leitura online/ download gratuito:. ISSN: 2358-8667::.
