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Passeamos pela alegoria artística na primeira edição, renovamos os votos com essa possibilidade da arte. Em seguida fomos atrás das pegadas da arte, seus ecos e vestígios. Agora com um pouco mais de coragem e audácia ficamos face a face com o cru. Só que a arte sempre escapa pelas mãos, ela não pode ser dominada, e aquilo que para nós era o cru, de repente ganhava outros sentidos. 

 

Quando dizem que é preciso encarar a realidade nua e crua estamos diminuindo a realidade, nada menos cru do que algo nu. Faz pouco tempo  que aprendemos a apreciar o cru na gastronomia, mesmo assim ainda certo deboche para alguns. O contato com o cru exige respeito e delicadeza, e coragem também. 

 

Perdemos a sensibilidade frente à realidade, e isso afeta nosso contato com a arte. Nelson Rodrigues faz o caminho contrário e reata ambas, o que potencializa ainda mais nossa imaginação, ele é nossa mira, sua escrita está mais próxima da crueza do que da nudeza. Pensamos nele, pensamos também em Graciliano Ramos, Artur Barrio, Moholy-Nagi, André Komatsu Bela Tarr, João Gilberto Noll, Pasolini, Nietzsche e Picasso, nomes que de alguma forma reviraram e reviram a nossa maneira de observar a arte e o real. O caminho muito mais longo do que uma só edição pode dar conta, mas esta é só o primeiro tapa na cara, ou o primeiro beijo na boca, depende de quem lê.

 

 

 

Alexandre Rese            -           Iriê Salomão Jr.

arte nua e crua

arte e reflexão 

openning the issue: 

O fotógrafo David Niddrie vive e trabalha no Canadá. Atua em projetos comerciais, mas dedica-se a criar um imagens autorais. Sua formação é voltada para o fotojornalismo e colabora com jornais e revistas canadenses, entretanto alimenta editorias de veículos de informação impressa internacionais. Desde o ano 2000, Niddrie desenvolve trabalhos em setores sem fins lucrativos.

 

Red Meat Diamond - David Niddrie

o belo pode ser imperfeito

Uma guerra, um pedaço de carne exposto e cercado por uma nuvem de moscas. Uma mulher chorando pela perda do seu filho, uma flor seca no vaso. Um rosto disforme, uma mão calejada do trabalho duro. Chagas, gritos, lamentos. As dores do mundo. O riso rasgado, o olhar arregalado. A boca desdentada, o cabelo trançado. A árvore cortada, os negros acorrentados, a tempestade que se aproxima. Uma mesa farta, uma janela aberta recebendo a luz da manhã. A roupa esfarrapada. Uma noite de conquistas mundanas, um corpo enfraquecido pelo inverno. O cálice cheio de vinho e o pedinte da rua fugindo do esquecimento. Há beleza e poesia nas imperfeições. Quem se atreveria a negar?  

 

A origem etimológica da palavra CRU, aponta para o não-cozido, o não processado. Mas acrescenta-se aí, o bruto, o primitivo, o visível, o natural. Uma pincelada com paixão misturada à loucura, também pode ser crua, avassaladora, diria Van Gogh. O acidental impulsiona a crueza. Buscamos a identificação na arte, queremos reconhecermos-nos e sermos reconhecidos. Ou jamais teríamos coragem de admitir Caravaggio como um mestre, simplesmente por ter usado prostitutas, lavadeiras, bêbados, jogadores, pessoas do “povo” como modelos. E a banalidade da rotina de açougueiros não estaria imortalizada por Annibale e nem a mesa cheia de farelos de pão e cascas de frutas da natureza morta pintada por Frans Snyders.

 

O fascínio pelo “real” nos toma como um susto e quando  percebemos, lá estamos nós ouvindo, lendo, assistindo às tragédias “vendidas” com o manto jocoso que tanto nos é próximo também. A sede por esta natureza voyeur, que nos acompanha como código genético vibra ao vermelho, aos discretos terrosos que pintam a paisagem da montanha, mas conseguem esconder corpos nus com músculos tensos. É um abandono quase dissimulado ao “bom gosto”. As formas perfeitas que tentam imitar ou projetar o que somos, se enfraquecem quando encaramos as rugas visíveis da velha senhora sentada na sala de luz tremulante de Rembrandt.

 

Em seus escritos, Hegel certa vez comentou sobre as imperfeições do belo natural, que difere do belo artístico: “De um modo abstrato, pode-se dizer que a ideia é o belo perfeito em si, enquanto a natureza será o belo imperfeito”. 

 

Há de existir dois universos, só pode... com duas forças que o regem. Uma delas que passa pelo sublime, ilusório, inebriante.  Já a outra, é arrasadora e primária, definida rapidamente entre um pensamento e uma ação, quase como num impulso, um ato de puro reflexo, sem arremate, quase dolorido.

por ALEXANDRE RESE

“Carcaça de Vaca” (1925), óleo sobre tela - Chaïm Soutine

A loucura, os vícios, os medos, as angústias, os limites enfadonhos que nos impomos transcrevem-se nesta maneira dura e crua da nossa realidade, que já não se satisfaz com os feitiços do fantasioso perfeito. A incorreção, a imprecisão e a desarmonia de formas, cores, modelos e movimentos fazem coro ao montante das criações artísticas. Representar o que se vê, criando a partir daí, uma nova realidade. A fidelidade não cabe na arte. Nem o literal. O filósofo alemão Walter Kaufmann já alertava: “A arte não é um espelho que mostra a realidade 'como ela é'. A arte mostra-nos um mundo reflectido por uma mente incomum que impõe um estilo no que retrata”.  

O corpo nú como alimento para saciar os desejos de interpretação e vistos através de um realismo que buscou a perfeição. Em poses bem ensaiadas, era a crueza de um gesto, a dureza de um olhar ou a sensação de fúria, que esteve a frente da busca incansável pela aproximação do que os olhos viam. Da necessidade inexplicável dos homens em se ver projetados e imortalizados em um instante. A artificialidade na “materialização” desta vontade foi transformando-se ao longo do tempo. O que um dia foi ideal, aos poucos rompeu padrões. 

 

Então, o “CRU” foi ficando menos inocente e as banalidades tomaram mesas e cadeiras. O mundo real também perdia a pureza e ofertava indecorosas decisões aos homens. Conflitos armados, violência, fome, trabalho, luta de classes, crises de identidade, defesa da sexualidade individual, solidão, eventos políticos, vida e morte, tudo num mundo cada vez mais veloz. Para questões tão humanas, interpretações não faltaram. 

 

Na TIMELINE desta edição tentamos indicar um caminho, não óbvio pelo mundo da crueza artística. Tarefa difícil, já que ao longo da história da arte, esse conceito foi se transformando bruscamente, como sem aviso ou aparente fronteira. É fato que as transformações culturais ocorridas principalmente durante o século XX, ainda encontram ecos sobre artistas, sobre os nossos olhos e interpretações. Mas apontam que existe não um caminho, mas vários na leitura de fatos e obras, lançamos na galeria a seguir, uma viagem particular e que possa colaborar de alguma forma, a lançar luz sobre o desafio de construir esta edição. 

“Natureza-Morta com Perdiz e Luvas de Ferro” (1504), óleo sobre madeira - Jacopo de’Barbari

“Pietà” (última década do século XV), terracota - atribuída a Michelangelo

“O Triunfo da Morte” (1562), óleo sobre madeira - Pieter Bruegel

“Water” (1566), óleo sobre tela - Giuseppe Arcimboldo

“Talho ‘O Grande’ Açougueiro” (1585), óleo sobre tela - Annibale Carracci

“Cabeça de Medusa” (1598-1599), óleo sobre tela montada em madeira - Caravaggio

“Natureza Morta com Frutas e Cristais”, ( 1652) - Willem van Aelst

"O Yawner", (século XVIII) - Franz Xavier Messerschmidt

“A Raia” (1727-1728), óleo sobre tela - Jean-Baptiste Siméon Chardin

“O 3 de Maio de 1808 em Madri: Fuzilamento na Colina do Príncipe Pio” (1814), óleo sobre tela - Francisco Goya

“Nu Sentado” (1822), óleo sobre tela - Eugène Delacroix

“O Poeta Pobre” (1839), óleo sobre tela - Carl Spitzweg

“As Respigadeiras” (1857), óleo sobre tela - Jean-François Millet

“Pão e Pernil de Carneiro (1866) - Cezanne

“Paisagem do Lago” (1865-1870), óleo sobre tela - Jean-Baptiste-Camille Corot

“Os Ceifeiros” (1892), óleo sobre tela - George Clausen

“O Grito” (1893), óleo sobre tela - Edvard Munch

“Amantes” (1913) - lápis, pintura a têmpera e óleo sobre papel - Egon Schiele

“A Noite” (1918-1919), óleo sobre tela - Max Beckmann

“O Cão”, estátua de bronze - Alberto Giacometti

“Nu Sentado” (1942), óleo sobre tela - Stanley Spencer

“Auto-Retrato - El Coronelazo” (1945) - David Alfaro Siqueiros

“O Prédio” (1951), óleo sobre tela - Fernand Léger

“Sem Título” (1958-1959), lona e papel - Raymond Hains

“Sem Título” (1962), pintura de gotejamento - Hermann Nitsch

“Lata Grande de Sopa Campbell (1962), acrílico sobre tela - Andy Warhol

“Achrome” (1962) - Piero Manzoni

“Cadeira com Gordura” (1963), Joseph

“Crucificação” (1963), óleo sobre tela - Francis Bacon

"Carteira de Identidade - Auto Polegar Direito" (1965 ), acrílica sobre tela - Rubens Gerchman

“Pintura Variável” (1966), colagem - Roulette

“Tapeçaria” (1969-1970), série pedaço de feltro - Robert Morris

“Anunciação depois de Ticiano” (1973), óleo sobre tela - Gerhard Richter

“Linda” (1975-1976), acrílico sobre tela - Chuck Close

“The Lightning Field – New Mexico” (1977), fotografia - Walter De Maria

“Água e Vinho”(1981), aquarela - Francesco Clemente

Máscara do Gabão

“Auto-Retrato” (1983) - Jean-Michel Basquiat

“Falando de Armas” (1987), colagem e recorte sobre papel chinês - Antonio Dias

“At Home With Themselves: Same-Sex Couples In 1980s America”, (década de 1980) - Sage Sohier

“Benefícios de Dormir” (1995), óleo em tela - Lucian Freud

série "Berlim Litografias" (1996), litografia - Jerry Zeniuk

“Sanduíche da Manteiga de Amendoim”, óleo sobre tela - Wayne Thiebaud

“Árvore”, óleo sobre tela - Scott Conary

Instalação de Henrique Oliveira

uma linha do tempo 

timeline:

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"ideias, é daí que nascem as obras

entrevista com ARTUR BARRIO

O artista ARTUR BARRIO, nascido em Portugal, mas vivendo no Brasil há décadas, transforma desde os Anos 60 a arte em material paupável e da não permanência nascem pautas para uma dezena de reflexões. Seus trabalhos são perecíveis, tal como nós, seres impermanentes, e por isso, aproximam-se tanto das questões humanas, que se transformam a cada nova vírgula, a cada nova reticência. Ou nas múltiplas reticências entre frases ou palavras, como nas respostas que BARRIO nos enviou por e-mail, no qual, curiosos, o perguntávamos sobre o processo artístico e como encara estes novos tempos sem limites, transfigurado e cheio de cruezas dissimuladas...

 

TECNOGRAPHY: o seu trabalho parece ter um compromisso com a Terra com o não dito, com algo de cru, mas que tentamos mascarar com nossas teorias. Os elementos orgânicos presentes em alguns dos seus trabalhos são uma alusão a eterna impermanência, a mudança que somos acometidos?


ARTUR BARRIO: ... a Terra e sua

transformação constante, portanto, os elementos orgânicos em meu trabalho são a própria impermanência do mesmo enquanto que não obsessão.

           Leia-se por obsessão a "obsessão do Ocidente" quanto à eternidade ou seja a arte e seus materiais vistos e trabalhados com esse objetivo. Portanto, o meu trabalho, tendo como premissa a efemeridade, cria uma variante fora dessa obsessão, a do Ocidente. 

O interessante é que ele [o meu trabalho] permaneceu, permanece, abrindo dessa maneira um outro espaço de leitura que não o espaço usual.

 

TECNOGRAPHY: suas obras nascem dos materiais, ou os materiais são escolhidos a partir da obra?

 

ARTUR BARRIO: Ideias, é daí que nascem as obras; das ideias.

                                                       IDEA  IDEIA

 

TECNOGRAPHY: o seu trabalho usa a potência do instante, já que na maior parte das vezes o que fica são documentos das obras e não a obra em si. Quando o encerra (se é que ele se encerra), a potência da obra é a mesma que havia imaginado antes de completa-la, ou ela foge do controle e revela uma potência que você não havia imaginado?

 

ARTUR BARRIO: ... o meu trabalho fala por si só o que [ por si só ] determina o processo do mesmo  quanto à sua potencialidade a partir do momento de suspensão que é quando o trabalho surge em sua totalidade e "beleza" ... ... ... a partir daí o tempo já não é determinado pela minha ação mas pelo tempo do próprio ou seja, não há acaso, não há descontrole.

 

TECNOGRAPHY: até que ponto a realidade (crua ou inventada) exerce influência no seu trabalho? Existe um limite para isso acontecer?

 

ARTUR BARRIO: ... a minha existência enquanto presença efêmera no mundo como reflexo desse mundo propicia o gesto criativo enquanto que sem limites; transbordante, aparentemente caótico em contraste a um mundo  pretensamente "organizado" e formal 

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TECNOGRAPHY: há paixão na sua obra, uma paixão por algo deste mundo. E existe paixão no que está fora da vida rotineira?

 

ARTUR BARRIO: ... sem paixão instaura-se a monotonia e a vida rotineira nada mais é do que uma "paixão canalizada, assim sendo, não é paixão.

           Penso que a relação das pessoas com o mundo é uma relação canalizada, condicionada a e por inúmeros fatores determinantes [ dentro ] desse processo e, talvez, nas férias [ recreio escolar ] surja vagamente a paixão da vontade de estar, ser, de inovar mas que logo desaparece devido a que [ recreio ] as férias terminaram ............................................................................................................................................................................................................................................................................... ............................................................................................. A sociedade é um rolo compressor onde as "paixões" são determinadas por ela mesma daí a grande monotonia imperante.

                                                                                                            ENSAIO SOBRE A MONOTONIA

 

TECNOGRAPHY: e o que te faz trabalhar hoje? O que te faz desejar agir?

 

ARTUR BARRIO: ... a inércia.

                           A vontade de não agir levada ao extremo de si mesma e é, daí, que surge a ação.

 

 

Restos da Pomba da Paz (76-77) - Artur Barrio

 

SITUAÇÃO.............OSSOS......SACO.........OSSOS.............1970...

 

TECNOGRAPHY: o seu trabalho, parece travar uma luta contínua contra a burocracia de pensamento do ambiente artístico. Estamos presos a um mundo de convenções, mascarado? Estamos preguiçosos?

 

ARTUR BARRIO: Não parece, ele também é isso. Quanto a estarmos presos a um mundo de convenções vejo a preguiça como uma preguiça formal, sem riscos, sem grande criatividade, um mundo de medinhos estratégicos ..................................................... o meio da arte é uma chatice, prefiro ir para o mar mergulhar a viver a chatice naftalina desse mundinho chamado mundo da arte.

 

TECNOGRAPHY: suas viagens, seus trabalhos, tudo está sempre em movimento. Até mesmo seus cadernos/ livros, que como diz não são diários, mostram que eles não tem datas como ponto fixos, são pensamentos em ações contínuas, sem fixação. É preciso movimentar-se para conhecer, para pensar, parar criar?

 

ARTUR BARRIO: ... sim, o movimento enquanto que ação/criação em contra partida ao enclausurado, ao imóvel, à inanição física monástica do artista em seu "atelier".

 

TECNOGRAPHY: olhando para o cenário atual do Brasil, da América-Latina e também do restante do mundo, onde a "realidade" se parece com um caleidoscópio político, social e cultural, como você interpreta esse momento ao qual estamos atravessando...

 

ARTUR BARRIO: ..............................................um momento de muitíssimo barulho e pouca criatividade  

 

TECNOGRAPHY: na sua opinião, a arte tem algum papel na "tradução" ou abordagem dos dilemas contemporâneos dos homens?

 

ARTUR BARRIO: .... raramente surge uma grande obra nesse tipo de "tradução" e no que toca a "arte contemporânea" mais raro ainda!

 

TECNOGRAPHY: existe algo ainda a ser dito através da arte? Há esta necessidade?

                              

ARTUR BARRIO: ... quando nada mais há a dizer é aí que surge a introspecção e o dizer.

                         DA INUTILIDADE DA UTILIDADE DA ARTE

 

TECNOGRAPHY: se um jovem pedir um conselho ao artista Artur Barrio, para iniciar uma vida na arte, o que Artur Barrio diria?

 

ARTUR BARRIO: .... ................................................... ........................................ ......................... ............................... ............. ............................. ........................ ............ ............................................................................................................................................................................................................................................................................ ............................... ............. ............................. ........................ ......................................................................................... ............................... ................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... , as putas também amam.   ★

 

é preciso agir além de contemplar

por IRIÊ SALOMÃO Jr.

Prezado sr. ARTUR BARRIO,

 

Já ao escrever teu nome, algo está dito. Possivelmente não sou único que ao dizer Artur Barrio, é capaz de sentir a presença da matéria, do peso. Um peso que distante do sentido de peso da tradição, ele está muito mais relacionado com o peso físico da matéria. Seu nome me diz que você está no mundo, talvez em camadas profundas do nosso planeta. 

 

Quando conheci seu trabalho, pouco entendi. Não vivi o período da ditadura, e apesar de estudá-la não conseguia sentir a mesma força na sua obra, que sentia ao pronunciar o seu nome. Talvez para alguns dos mais ilustres estudiosos do seu trabalho o que vou dizer pode parecer uma besteira enorme, mas como tenho um espaço para lhe escrever algo fico livre para escrever o que senti.

 

Para ser verdadeiro preciso ressaltar que só consegui me aproximar da sua obra quando fui morar próximo ao aterro do

 

Experiência n°1 (1987) - Artur Barrio 

 

flamengo. Todos os dias eu caminho na pista do aterro, e para chegar até ele passo por um túnel de pedestres que atravessa, por baixo, a pista de carros do aterro. Foi nesse túnel que te descobri. Na escada que leva ao túnel, há um tipo de matéria estranha, tento identificar o que era. Parecia piche, chumbo derretido, alguma coisa que grudou no cimento e por ser tão disforme me chamou atenção. No túnel encontro frases rabiscadas, ou riscadas na parede, algumas delas me lembro de cabeça, “ A 500 anos explorados por Cabral!”, “Grafite pode”, “Menos Paes, mais paz”, frases incríveis que estão lá feitas a risco de pedra, ou a tinta de spray. No túnel a sensibilidade não é tocada apenas pelo visual, o cheiro rascante e ardente penetra em nós, como o cheiro de uma vida desesperada que parece estar aterrada, e só quando o olfato grita que a percebemos.

 

Sr. Artur Barrio, não tenho receio em dizer que, ao lhe descobrir nesse túnel e não considere uma ofensa, ou algo alucinado, porque realmente foi lá que te encontrei. Tudo para mim fez sentido quando cheguei do outro lado dele e dei de frente com a lancinante vista do Pão de Açúcar, e seus barquinhos amestrados que dançam no mar. Pensei, “que artista esse homem que cria uma realidade tão ardente num túnel tão perto dessa paisagem. Não consigo acreditar que aquele túnel não é obra sua.” 

 

Há uma frase sua que colhi, ou melhor arranquei de um vídeo sobre você, em que diz  “ O que procuro é o contato com a realidade em sua totalidade, do tudo que é renegado, do tudo que é posto de lado.” Quando li esta frase percebi a sua presença ainda mais forte no aterro, a palavra aterro para mim, tornou-se participe, Barrio é o artista que revela toda a realidade que procura ser aterrada. Que força em seu trabalho, nada exige mais vigor do que o trabalho de desaterrar, desobstruir a realidade para que ela se apresente em sua totalidade. Um gesto de desobstrução é isso que vi quando assisti seu vídeo dentro de uma galeria, criando  cavando a parede, revelando a caligrafia escondida, espalhando a matéria. Nem sempre desobstruir é quebrar, às vezes é ativar elementos, e penso que eis aí o motivo da ação de espalhar no chão dos cubos brancos das galerias vários materiais. Eles  transformam um cubo branco num experimento de realidade.  Diferente do óbvio, Artur Barrio, não parte para a denúncia explícita, ou para a provocação. A ação do artista não é a de quem faz o trabalho artístico como mecanismo político. Ele é muito consciente do potencial que a arte tem de explorar e estranhar o mundo. Como comenta Luiz Camilo Osório, no ótimo texto presente na obra Artur Barrio: Sonho de Arqueólogo “É fundamental desvincular o estranhamento da provocação, na medida em que o primeiro que dar a arte, ao fazer poético, uma potência política e o outro, que quer dar à política ou melhor ao discurso ideológico um verniz estético.” Essa é a atitude artística de Barrio, ela que  o permite agir em qualquer lugar. Sua grande capacidade, está em saber criar o estranhamento ainda hoje. Àqueles que veem a obra do artista pela sua relevância do passado, acabam por abrir mão de ver um Artur Barrio que consegue criar incômodo num ambiente artístico sufocado de lugares-comuns. Como ele mesmo fala “Acho que pelo menos o clima de algo que incomoda, que é diferente, me acompanha.”

 

Baudelaire ao falar de Victor Hugo dizia “Em tudo ele põe a palpitação da vida.” Estou distante da capacidade de dizer o essencial, como Baudelaire, mas aproveito seu roteiro e digo-o de Artur Barrio,  “em tudo ele põe o incômodo da realidade”. O pouco material que Barrio costuma levar para realizar suas obras, como pode ser visto  no vídeo  Experiência n°5, Galeria de Arte do Espaço Cultural Sérgio Porto, 1991. Artur Barrio entra no famoso cubo branco do ambiente artístico e com pouquíssimos materiais, semelhante a um nômade ele começa a deixar marcas naquele espaço. O nômade é aquele ser que não precisa de um cenário fixo, ele é capaz de dar sentido e realidade em qualquer ambiente, com os elementos que aquele território passageiro proporciona. Vejo Artur Barrio realizando o mesmo na arte, sua desobstrução do ambiente de uma galeria é crua, e seu gesto é preciso. 

 

 

 

O Caráter Destrutivo é um texto esquecido, do cada vez mais lembrado Walter Benjamin, podemos ler no primeiro parágrafo “ É possível que alguém, ao fazer um retrospecto de sua vida, verifique que quase todas as ligações profundas que ele experimentou, tenham partido de indivíduos sobre cujo ‘caráter destrutivo’ todo o mundo estava de acordo. “ Acredito Sr. Artur Barrio que em sua realização artística, vejo uma aproximação com o  caráter destrutivo descrito pelo filósofo alemão. Quando Walter Benjamin diz “O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas, por isso mesmo, vê caminhos por toda a parte. Mas porque vê caminhos por toda a parte, também tem que abrir caminhos por toda a parte. Nem sempre com força brutal, mas com força refinada. Como vê caminhos por toda a parte, ele próprio se encontra sempre numa encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que trará o próximo. Transforma o existente em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho que passa através delas.” Nesse trecho da obra do filósofo alemão, pegamos com mão cheia, vários elementos de Artur Barrio, sua obra não é duradoura, por isso, sua liberdade. Ao entrar numa galeria o artista não encontra paredes, ou espaço para ser preenchido com suas obras, naquele espaço ele vê sua própria obra, é com o espaço que Artur Barrio vai criar o estranhamento. O caráter destrutivo de Artur Barrio está presente na encruzilhada que ele se encontra, um artista do estranhamento, da oposição que hoje está em galerias, o que fazer? Abrir caminhos. E assim surgem suas obras que ao final da sua realização ficam como ruínas, que não tem significado por conta do farelo no chão, ou da especificidade do material que está no chão e sim pelo caminho que passa por esses materiais arruinados.

 

Espero que entenda que este texto, é apenas um espanto. Não posso ainda detalhar profundamente, passar para o papel algo que incomoda com tanta força, como sua obra, mas quero que saiba, que não nasci na ditadura, conheço seu trabalho pelo hoje, mesmo que compreendendo a importância dele no passado. E o que vejo e sinto hoje pelo  seu trabalho é muito mais interessante do que observar o Pão de Açúcar e seus barquinhos amestrados que dançam numa matéria disfarçada de água.

guernica

por DAVI PESSOA C. BARBOSA

Uma lágrima furtiva). Há três ou quatro anos, quando num diálogo com Malraux, diante das câmeras da televisão francesa, lembrando “GUERNICA” de Picasso, recordávamos aquela manhã em que o pintor quis colorir seu painel recém acabado, eu trouxe à tona, mais uma vez, a lágrima furtiva de sangue (no papel recortado) que Picasso pôs em minhas mãos para que a colocasse todas as sextas-feiras sobre o olho de uma de suas figuras principais (a mulher, o cavalo, o toro…) durante o tempo em que “GUERNICA” estivesse em exposição no pavilhão da Espanha (da República Espanhola), em Paris, para o qual havia pintado expressamente (com clara intenção política – e por isso histórica – que, segundo nossa opinião, ainda não prescreveu. Lembrando aquele episódio (que alguns dias atrás o meu amigo pintor Pepe Caballero trouxe à tona durante uma transmissão da televisão espanhola), Malraux me perguntava pelo paradeiro daquela lágrima sangrenta (de papel, repito, lágrima simbólica, recortada pela mão do próprio pintor), e quando lhe disse que a havia perdido, ele se lamentou, não sem perder a esperança de que algum dia fosse encontrada, ou se por acaso muitas fossem encontradas, poderiam rivalizar os negociantes, cotando-as em preços altíssimos, como um grande negócio. Porém, o valor simbólico daquela lágrima furtiva – disse-lhe, e não só por consolação – acredito que não tenha se perdido, e, talvez, não ficará perdida por muito tempo, ou jamais irá desaparecer.

 

Lembrarei novamente o episódio a que estou me referindo; vou manifestá-lo mais uma vez, já que de todos seus atores eu sou o único sobrevivente.

 

 

José Bergamín

Repetirei exatamente o meu texto, escrito pela primeira vez no México, em 1943, o qual dizia assim:

 

“Graças a Dora Maar e a Zervos nos restou o testemunho fotográfico da evolução deste painel magnífico (publicado por Zervos em seus Cahiers d’Art). Que exemplo maravilhoso de veracidade, de maestria! Enquanto o contemplávamos aos poucos – vendo-o nascer, aparecer em sua criação viva – (Yvonne e Christian Zervos, Dora, Malraux e eu assistíamos a esse espetáculo), víamos, ao mesmo tempo, em contato com Picasso, como lutava consigo mesmo para alcançar essa última nudez de sua pintura criadora: de sua poesia. Nossos conselhos muito pouco incomodavam, caso tenham existido, pois a Picasso lhe aterrorizava a verdade cruel que suas mãos, aos poucos, descobriam. E tratava de escondê-la dos olhos, de vesti-la – tragicamente? – com recortes de papéis coloridos… Como está? – ele nos perguntava. E nós os rechaçávamos em silêncio. Os brancos, os cinzas e os pretos puríssimos de “GUERNICA” respondiam por nós nesse silêncio. Pausadamente, daquela intenção não restava mais que um pedacinho de papel recortado: uma lágrima vermelha de sangue. Picasso a colocava, aqui ou ali, nos olhos das diferentes figuras. Insistia em mantê-la diante de nós, como se fosse uma obstinação, como uma espécie de alegria infantil. Essa lágrima furtiva de sangue foi a última por seus arlequins perdidos, juntamente com sua escapatória arlequinal do cubismo? Aquela lágrima fingida se perdeu para sempre. E “GUERNICA” – preto, cinza, branco – permanece para sempre como testemunho imortal de sua arte. O pintor colocou nele sua verdade poética mais pura, porém cruelmente nua, descarnada, desmascarada das aparências impetuosas de seus outros painéis. E essa nudez terrível nos fere com a interrogação dramática de sua própria angústia”.

 

Essa angustiante interrogação dramática, hoje mais viva que nunca para nós, não é somente aquela da imortalidade aparente da obra-de-arte por sua intemporalidade paradoxal, mas também da não menos afirmação paradoxal que ainda nos atinge. Nesse caso, o painel imortal de Picasso, por não ter ainda se desenraizado da seiva viva que o sustenta; de seu mesmo sangue acusador, invisivelmente inseparável de seu testemunho temporal e vivo. Trágica afirmação, testemunho atual acusador, e atuante, de que sua execução pictórica admirável ainda não se livrou ou se emancipou; nem de nosso julgamento ele jamais poderá se emancipar sem deixar de sê-lo; sem se autodestruir. Porque a paixão humana da verdade que nos expressa treme (como disse Bécquer a respeito de toda pintura) inseparável da mão, dos dedos que a fazem pulsar: que pulsam o sangue do coração dessa mão, criadora do artifício pictórico, de sua ilusão viva, da imagem agoniante que o realizou, verificado para sempre.

 

José Bergamín Gutiérrez (Madrid, 1895 – San Sebastián, Guipúzcoa, 1983

 

Guernica (1937 ), painel pintado - Pablo Picasso

A essa terrível agonia permanente que nos transmite “GUERNICA”, que consideramos trágica, não poderíamos acrescentar a mínima piedade por uma única gota de sangue, uma lágrima de sangue simbólica que apenas foi furtiva: seu horror e seu terror ainda permanecem vivos. “GUERNICA”, de Picasso, não é pintura morta destinada às galerias panteônicas de qualquer museu real ou imaginário. O painel imortal de Picasso não pode ou não deve voltar à sua Espanha imaginária a qualquer momento. E muito menos mascarado esteticamente de inocência artística, de inofensividade abstrata ou de piedosa mentira pacificadora. Não. Porque aquilo que diz – disse e seguirá dizendo enquanto for visível – não é isso. E também acreditamos que sua nudez, seu “esqueleto vivo” descarnado (tal como diria Calderón) não pode se vestir como um boneco, disfarçando-se com papéis coloridos (se burocráticos), com a politicagem mentirosa, enganosa armadilha de sua mumificação borrada, como a de um cadáver ilustre (como se fez com Falla e Juan Ramón Jiménez), para sepultá-lo no silêncio terrível e aterrorizante; além do ruído nefasto que se fez para calá-lo.

 

Se “GUERNICA”, de Picasso, pertence ao povo espanhol, que voz espanhola tem, hoje, sua autêntica autorização representativa para protestá-lo? A única que poderia tê-la, a do povo vasco, segue sem possibilidade de fazê-lo; porque continua afogada em seu sangue e perseguida pelo terror que “GUERNICA” expressa e denuncia: o do franquismo. Já é significativo que se peça a volta do painel de Picasso para a Espanha pelas mesmas vozes que pedem o retorno dos restos mortais de Antonio Machado e de Azaña. Se essa importação de cadáveres gloriosos já é suspeita como sendo manobra de politicagem, falsa até a morte, o que poderíamos pensar do retorno da pintura viva de Picasso como cúmplice e encobridora da sinistra continuação legal (!) que representam seus peticionários? Por maior que seja a armadilha – e é enorme, sem medida –, o painel de Picasso não cabe nela; e seria necessário quebrá-lo em pedaços para ter êxito; para espantá-lo ou aniquilá-lo naquilo que é e naquilo que representa, pois é disso que se trata. No entanto, acreditamos que sua violência maravilhosa basta a si mesma para impedir tal feito.

 

(Sábado Gráfico, 10 de dezembro de 1977).

 

*José Bergamín, “Guernica”, In: Litoral – Revista de la Poesía y el Pensamiento, “José Bergamín: El pensamiento de un esqueleto; Antologia Periodistica II”, n. 145, 146, 147, Madrid, 1984, tradução Davi Pessoa.

 

 

manifesto

por IRIÊ SALOMÃO Jr.

minha admiração por Cèzanne

Sei que já passou a época dos manifestos. O pai de todos, o manifesto futurista tem 106 anos. Já sentindo o peso da idade, a manifestação de hoje será afetiva. Quanto mais velho ficamos, menos vontade temos de falar daquilo que não gostamos (exceto os rabugentos), e passamos só a falar do que nos dá prazer, não tenho mais energia nem voz para gritarias banais.

Guardei forças para um último grito: 

 - Cézanne é rocha, é pedra atirada!

 

Todos viviam muito bem enganando a si mesmos, com crenças puídas. De repente Cézanne se atirou, e o que era sólido se desmanchou no Pá(!) de uma pincelada! Caiu o mundo da perspectiva.

 

Preciso ser menos afetado, o gesto do pintor não se deu em uma pincelada, organizou-se por toda sua obra. Como equilibrar o mundo sem a perspectiva inventada pelos renascentistas? Acreditavam que era aquele o jeito correto de olhar para as coisas. Mentira, era só mais um jeito. Por abrir um mundo novo, cada passo, como no filme de Indiana Jones, era muito arriscado, era preciso se reequilibrar a todo o momento. A natureza o esperava, e ele avançava em silêncio.

 

Manifesto minha admiração por alguém que jamais se preocuparia em justificar sua posição nos jornais. Suas cartas mostram seu estado íntimo, a alma de alguém que procura, e não de quem já achou, como se tivesse nascido pronto com um pincel na mão, e uma carta de intenção na outra. Cézanne fez o caminho mais difícil, do silêncio. Como ele dizia sobre a relação do artista com a natureza 

 

“O artista é paralelo a ela sempre que não se intromete deliberadamente. Toda a sua vontade deve calar: ele tem de calar a si as vozes de todos seus preconceitos; tem que esquecer, fazer silêncio, parar ser um ecoperfeito. A natureza de fora e daqui de 

 

 

dentro [bate no peito] devem se interpenetrar, para perdurar, para viver com uma vida metade humana, metade divina, a vida da arte. A paisagem se reflete, se humaniza, se pensa dentro de mim.”

 

O que adianta chegar munido de todos os instrumentos para enfrentar o desconhecido? É preciso conhecê-lo antes. A obra de Cézanne é grande. Nas suas caminhadas em Valvin, ele entra em harmonia com o lugar. O que parece apenas um jogo místico de artista, na verdade vai muito além.  Cézanne mostra quantas amarras nos impedem de ver o que está à frente. Pintores chegam diante da paisagem já com o objetivo de definir a perspectiva, ponto de fuga e etc. Enquanto Cézanne dá peso e valor ao que vê. Cada quadro se constrói no seu tempo. A experiência da obra é única, as leis vindas da renascença não darão conta do instante em que o pintor enfrenta a tela branca. Elas serviram para outros anseios, para o artista Cézanne elas não servem mais, idioma com naftalina.

 

“Ouça o que vou dizer para ti. Não recuses o perigo, mas tenta sempre o mais difícil.” Essa frase não é de Cézanne, está no romance Paraíso de José Lezama Lima, mas tenho certeza que ele gostaria de ouvi-la.  Um homem que diz numa carta “Encontro-me em tal estado de perturbações cerebrais, numa perturbação tão grande, que temo num dado momento minha frágil razão venha a romper-se[...] Agora parece-me que estou enxergando melhor e pensando com mais precisão na orientação de meus estudos. Conseguirei chegar ao objetivo tão procurado e tão longamente perseguido?[...] jurei a mim mesmo morrer pintando, em vez de soçobrar no idiotismo aviltante que ameaça os velhos que se deixam dominar [por] paixões que lhes embrutecem os sentidos”

 

 

“Garoto de Colete Vermelho” (1888-1889), óleo sobre tela - Paul Cézanne

“Natureza Morta com Cebolas” (1895-1900), óleo sobre tela - Paul Cézanne

Fica claro que Cézanne corre perigo, ele sabe disso. Seu desconforto mental é o sacrifício. E porque este pintor se tornou para os que vieram depois? Porque o idiotismo aviltante e senil está dentro e fora da pintura. 

 

Como nos lembra Jorge Larrosa “assumir o destino é assumir o perigo, um perigo que não pode afrontar astuta ou esquivamente com mentiras”. Enquanto outros pintores cheios de capacidade de expressão, continuavam num jogo de imitação. Cézanne entra em contato direto com o mundo. A inteligência é usada para formar um quadro, e não para padronizar um olhar. 

 

Sinto que carrego a herança de Cézanne. (Aqui está o gesto grandioso que todo manifesto precisa ter).

 

Sem pincel carrego Cézanne comigo. Sua maior herança, aquela a qual pretendo ser fiel é a de sempre escolher o desconhecido. Com ele o contato será cru, será sincero. Decidir sempre por seguir para o local que não sabemos. Esse local é tão vazio de preconceitos, de decisões pré-determinadas que, possibilitará nos tornarmos o eco perfeito do desconhecido, mas para isso, é preciso calar. 

 

 

*(Manifesto escrito em Times New ) Obrigado Marcelo Duprat por permitir que eu apertasse a mão de Cézanne e sujasse meus dedos com a tinta da montanhas.

 

...de dentro pra fora!

Cao Hui

por ALEXANDRE RESE

Voltemos no tempo, por ora. No tempo, em que a linha tênue entre real e mítico se entrelaçavam até se transformarem em um nó, bem amarrado. Cáricle, um jovem grego, certa vez visitou uma famosa estátua de Afrodite para admirar a volúpia feminina na alva superfície. Diante da beleza, frontal, de lábios semi-abertos, a olhar-lhe profundamente, a deusa esculpida em pedra, o seduziu. Se no Olimpo, Afrodite era dona de histórias amorosas, por que não poderia semear aos simplórios terrenos o gozo do amor? Enquanto as guardiãs do templo fechavam as portas do local sagrado, encerrando mais um dia de visitações, Cáricle, escondeu-se e passou uma noite inteira com a adorada deusa, murmurando poemas e deliciando-se com o corpo de mármore.  Pela manhã, as marcas da noite de prazer estavam presas a Afrodite e interpelado por uma guardiã, o jovem exclamou: “Portanto, a mulher, mesmo sendo de pedra, é amada. Imaginem se estivesse viva...”. 

 

Regressemos ao presente. Podemos pensar o quanto Afrodite/ Vênus e suas representações ainda fascinam os simples mortais, mesmo deslocadas do tempo, perdidas nos séculos de outrora. O ideal de beleza nelas esculpidas nos povoam. E assumem novos significados com o passar dos anos. Na China contemporânea, o artista Cao Hui apropria-se de figuras cheias de significados para a arte do Ocidente. Vênus e Davi, ícones máximos da nossa identidade cultural, despem-se da aura imortal e de intocáveis quando esculpidas pelas mãos do chinês. A altivez, a glória ainda permanecem, mas escondem elementos “humanizados”, as figuras míticas foram invadidas por vísceras, terminações nervosas, músculos e irrigadas pelo mais vermelho sangue dos homens mortais. Continuam triunfantes, embora escondendo também a fragilidade que somente a nós cabia.

 

Talvez seja impossível imaginar como reagiria um grego antigo se visse a amada deusa Afrodite inundada de tamanha mortalidade. Eis o que diferenciava os deuses do Panteão dos seres comuns não eram os sentimentos,

  Vênus, Escultura Clássica Dissecada - Cao Hui

    Davi, Escultura Clássica Dissecada - Cao Hui

mas sim, eles nunca morrerem. Cao Hui subverte o “jogo” das representações. Agora, não basta concretizar uma imagem idealizada, coloca-se no papel do “criador”, daquele que dá o sopro da vida, ocupando o espaço do oco ou substituindo o maciço pelas complexas estruturas orgânicas do corpo humano. Assim, como criar estruturas modulares, que se encaixam como num perfeito quebra-cabeça ou separá-las em fatias, como numa imagem de exame de tomografia computadorizada em 3D,  apontando que não há mais nada inteiro, somos todos, sem distinção, ”divisíveis”. Heróis e deuses já não cabem em altares, sejam religiosos ou como símbolos imaculados da história da arte. “Se eu fosse Phidias, se eu fosse Michelangelo, se eu fosse Rodin, no início da criação, eu criaria os órgãos internos com certeza, deixaria a obra igual a um ser humano de dentro para fora”, provoca Cao.

 

Cao Hui conta que começou a esculpir “enganado” por um professor, que lhe disse “Estudar escultura não tem nenhum gasto. A lama é de graça, é só pegar na rua. Você não precisa comprar tinta, papel, tela. Tintas são caríssimas. Estudar pintura a óleo vai empobrecer sua família. Vá aprender a esculpir!” , estes argumentos foram suficientes para o artista começar a se dedicar exclusivamente às esculturas. E este meio de expressão artístico, passou a permear a vida do escultor, que confessa “Devido ao meu conhecimento profundo desta arte, eu tenho facilidade de apresentar meus pensamentos por meio dela. Por isso, na maioria do tempo, a escultura é minha primeira escolha. Porém, eu sempre sinto que a escultura tem sua própria limitação. Ela é uma arte estática, sólida e concreta, que somente pode exprimir uma pequena parte do mundo que nós percebemos”. Roberto Calasso, renomado escritor italiano, também escreveu sobre o poder da estátua na história, “é uma memória condensada em poucas, rígidas incisões. Pressupõe uma cena, uma ordem de eventos e figuras. A estátua ignora a decifração. Mas sentimos que, antes de significar algo para nós, quer apenas ser acolhida pelo olho - e aí ficar”. E estas palavras de Calasso parecem caber muito bem no ato que é repousar o olhar sobre a obra do artista chinês.

 

As esculturas de Cao Hui são de um profundo cuidado. Os detalhes com a anatomia, por exemplo, transformam poses  e figuras em novas possibilidade, novas leituras exploratórias. Davi que já fora uma criação de Michelangelo e lutou nos tempos bíblicos contra um gigante, pode ser contemplado agora, a partir de Hui, em diferentes ângulos, literalmente, seja em sua forma completa ou num desconstruir sem pressa. Este Davi quando desmontado revela-se não de imediato, mas a cada pedaço retirado das feições clássicas e ditas perfeitas, que abrigam estruturas cerebrais. Seria este homem invencível, um bom estrategista? A instrumentalização divina seria só um “por menor”? Os raciocínios sobre esses aspectos podem ser muitos. Aqui, sob as sombras das dúvidas, podemos nos agarrar a Heráclito, que nos esclarece de certa maneira algumas questões que não podem ser dissociadas quanto a relação com as forças humanas e divinas: “Que são os deuses? Homens imortais. Que são os homens? Deuses mortais." O transporte do ser endeusado para o aspecto humano nos aproxima deles, que são estandartes da nossa identidade cultural. Assim como os deuses se parecem com

mortais, também temos um pouco de divino em nós. Afinal somos imagem e semelhança uns dos outros.

 

As inspirações para o trabalho de Cao Hui vem a partir de vários aspectos à sua volta. A busca pela aproximação da realidade se intensifica na criação de objetos presentes na nossa rotina. Se por um lado o trabalho de Cao é um retorno aos tempos “míticos” da arte e da história, no contra-ponto, se aproxima daquilo que se anda falando sobre os nossos dias. Poltronas, casacos, luvas, sapatos, bolsas, quase numa denúncia sobre a irracionalidade dos tempos do “ter”. Animais sem pele, com os músculos à vista nos levam para um abatedouro. A poética destes trabalhos são elevadas a uma invariável crueza e Hui completa “Na busca da absoluta realidade, eu faço a modificação adequada na expressão para que a maioria dos espectadores possam entendê-las”. 


 

A minúcia dos detalhes e texturas na construção das imagens, impulsionam a acreditar que um sofá possa ser, à sua maneira um organismo vivo, que para confrontar, comprovar que o é, se rasga e mostra as entranhas, sempre escondidas, nunca reveladas, mas ainda imóvel e com certo conforto. Para chegar a este ponto do trabalho, em que o realismo se sobrepõe às interpretações pessoais e subliminares, o perfeccionismo parece ser uma constante e Cao Hui é bastante claro nesta questão avaliando o próprio processo de criação: “Anos de treinamento, atitude de trabalho rigorosa e ter um pouco mais de paciência do que os outros”. 

 

Sobre as fronteiras da arte, Cao pondera “Mesmo que o mundo esteja sendo cada vez mais aberto, a arte ainda enfrenta certa restrição. Por exemplo, a limitação de comunicação causada pela diferença cultural; a limitação da escolha causada pelo conflito do tema da arte e a realidade; a limitação do nível da arte entre a obra boa e a obra ruim”. E complementa sobre o cenário contemporâneo: “Este ponto envolve vários aspectos, é difícil comentar sem fazer uma palestra”. ★

 

 

 

 

 

 

* CAO HUI

conversou exclusivamente com a TECNOGRAPHY.

 

Sofá, Escultura - Cao Hui

o sertão sem enfeite

entrevista com LEANDRO MARTINS

LEANDRO MARTINS tornou-se convidado querido da TECNOGRAPHY para compartilhar experiências e os resultados desse caminhar pela arte de fotografar. O perfil meticuloso da composição das imagens de LEANDRO, por vezes soa como desolação, mas os tons, texturas e planos, as movem do lugar comum, num desafiar da poética do cotidiano, seja pelos campos de várzea sem “peladeiros” ou pelo árido sertão. Na série “Nordeste da Peste” - destaque desta edição -, a crueza, o medo e o “esquecimento” são alguns dos “sentimentos”  que se encontram nas fotografias feitas em 2013, entre Pernambuco e a Paraíba. Conversando, o fotógrafo nos contou como surgiu a paixão por fotografias e quais desafios o fazem seguir adiante, mergulhando em novos universos. 

 

TECNOGRAPHY: A sua formação profissional vem da publicidade, certo? Como foi/ é esse trajeto solitário da criação de um trabalho autoral?


LEANDRO MARTINS: Sou formado em publicidade e propagada, pós graduado em marketing e tenho especialização em criação. Era estagiário do Jornal O Povo em 1999, quando presenciei dois criativos da Fisher América, uma das grandes da publicidade na época, apresentarem uma campanha publicitária fantástica. A verba do cliente era pequena e justamente por isso, toda a campanha girava em torno dos anúncios “all type”. Os títulos eram tão bons e estavam tão alinhados com o “briefing”, que a campanha foi um sucesso. Me lembro que essa campanha trouxe uma série de prêmios para a agência. Me apaixonei pela publicidade ali e acabei

Lampião

Iracema

Lucimauro.png

Geraldo

Damião

Cícero

Elba

Francisca

trabalhando no meio. Entendi naquele exato momento a força do conceitual, o valor do menos, o poder da criatividade e a leveza de algo esteticamente bem feito. Aquilo mexeu comigo. Então embrulhei tudo o que encontrei de bom ali e coloquei nas costas. Essa é uma bagagem que faço questão de carregar comigo quando fotografo. Foi fácil para mim lidar com o trajeto solitário da criação. Em algum momento que não sei precisar, a solidão passou a soar para mim como algo muito bom e há muito tempo que me permito momentos em sua companhia. É na solidão que nos confrontamos, que nos enxergamos claramente, que questionamos abertamente nossas idéias e concebemos artisticamente o que são as nossas verdades. Sinto que tenho maior controle e que consigo “manusear” melhor o tempo e as idéias quando sozinho. Então esse trajeto solitário de criar um trabalho autoral sempre foi bem vindo. Diria até desejado.

 

 

TECNOGRAPHY: Na sua opinião, por que a fotografia tornou-se o "veículo" para a sua expressão artística?

 

LEANDRO MARTINS: A fotografia é algo que faz parte da minha natureza. É instintivo. Preciso fotografar. Havia acabado de entrar para a faculdade e me recordo de ter ficado íntimo de uma câmera em menos de 1 dia, que entendi claramente todo processo, desde o clique até a imagem final, revelada, com uma facilidade que nunca tive para outras coisas e percebi que poderia "escrever" sobre qualquer coisa com o olhar. Gosto tanto de fotografar, que moldo hoje toda minha vida em torno disso. É um vício mesmo, que carrega o meu corpo de adrenalina, ao mesmo tempo que me enche com uma paz divina. É uma das poucas coisa que me faz perder a noção do tempo. O meu encontro com a fotografia foi um acaso, mas sinto como se esse encontro fosse algo maior que um simples acaso, um presente talvez. A fotografia é para mim um bilhete de viagens, faz do mundo o meu atelier pessoal, me permite explorar tudo o que me interessa, me coloca em contato com o que há de mais diverso, me permite conhecer algo novo todos os dias, me mantém cercado por pessoas fantásticas, me mantém curioso, questionador, me instiga a produzir e faz de mim um homem feliz.

 

TECNOGRAPHY: Quais as suas influências visuais?

 

LEANDRO MARTINS: Eu vejo muita coisa o tempo todo, seja em exposições, em arquivos, livros ou virtualmente. A internet ao mesmo tempo que nos coloca em contato com o que está sendo produzido de novo no mundo, tornou o passado da arte mais disponível do que nunca, com um grau de riqueza jamais visto. Podemos observar fotografias, detalhes, pinceladas, esculturas, tudo em grande escala. O trabalho dos grandes artistas e da grande maioria dos novos artistas se tornou acessível. Comigo carrego o trabalho de muitos que tenho como referência. Vou desde o preto e branco impecável do Sebastião Salgado, até a miscelânia de cores e formas no trabalho de Ernesto Neto, que acho realmente incrível. Vou de Robert Capa a Annie Leibovitz. De Mestre Vitalino com suas pequenas esculturas do sertão de Pernambuco a Spencer Tunick e suas fotografias ao redor do mundo. Sou fascinado pelo trabalho de fotógrafos que cobriram e/ou cobrem guerras e demais conflitos.. E ai temos João Silva, Kevin Carter e toda trupe. Assisto muito National Geographic e canais similares pelo conteúdo dos documentários e presto muita atenção na fotografia do cinema. Vejo um pouco de tudo e faço o meu filtro. Guardo o que me interessa e olho para aquilo diversas vezes. Em paralelo, mantenho contato com outros artistas, onde tenho a oportunidade de acompanhar a produção, conversar e trocar, sempre, o tempo todo.

 

TECNOGRAPHY: Podemos dizer que a fotografia tem um apelo que se aproxima do real. Você concorda? 

 

LEANDRO MARTINS: Sim, claro. A fotografia é a cápsula que transporta o real através do tempo. Por isso o seu poder. São momentos reais, coisas que aconteceram e que foram capturados com a ajuda do olhar privilegiado de um fotógrafo.

 

TECNOGRAPHY: A "crueza" do retrato pode abrir espaço para o imaginativo?

 

LEANDRO MARTINS: Acredito que vai além de abrir apenas um espaço. Essa crueza permite o imaginativo de tal forma, que um único retrato observado por 50 pessoas, pode resultar em 50 novos retratos. É o poder da imaginação atuando de acordo com a vida, as escolhas, os medos, as alegrias, as expectativas, as frustrações, as lembranças e as esperanças de cada um. Envolve muito mais do que um simples olhar.

 

TECNOGRAPHY: Como você elabora os temas/ ensaios que fotografa?

 

LEANDRO MARTINS: Tenho minhas questões com a vida e tento trazê-las a tona através do meu trabalho. Nele interferem meus valores, minhas crenças, minhas dúvidas, minhas referências, minhas idéias, minha história, meus conflitos internos e externos. O meu trabalho precisa caminhar entre o documental e o conceitual. Precisa me instigar a conhecer mais a fundo e a buscar um novo olhar que confronte o que pré concebi enquanto idéia. Esse sempre foi o meu grande desafio e na busca por esse olhar em cada projeto, fotografo, anoto bastante, me relaciono, pesquiso, resido. Estar em diferentes lugares, em contato com outras realidades, outra gente, outras culturas, também é algo que gosto de inserir como condição para os meus projetos, mas isso não é uma condição sine qua non. Faz parte do meu processo produzir diversas coisas ao mesmo tempo. Tenho uma sensação claustrofóbica quando me vejo muito tempo centrado em um único projeto. Isso me deixa um tanto atordoado. Gosto que as coisas aconteçam uma em paralelo as outras, pois assim consigo mudar de ares e isso me ajuda a ficar descansado em relação aos projetos sem parar de trabalhar neles todos os dias. Assim vou construindo o meu trabalho, me descobrindo enquanto fotógrafo, enquanto artista. Não pode ser de outro jeito. Todo o resto é organizado, mas os projetos não podem deixar de acontecer em paralelo, de um jeito livre, não importa o tempo que levem. Permeiam o meu consciente o tempo todo, os meus dias.

 

TECNOGRAPHY: Quando é que a fotografia passa de um simples registro e adquire uma aura especial? Isso acontece?

 

LEANDRO MARTINS: Acho que dois fatores são fundamentais: a liberdade que você tem para fotografar e quão íntima é a relação que o fotógrafo estabeleceu com o ambiente e com o que ou quem está fotografando. Por isso vemos o trabalho do Sebastião Salgado, assim como o trabalho do Henri Cartier Bresson tão carregados com essa aura. São fotógrafos que não estavam ali somente pelo clique. Mas existem fatores como o tempo e, claro, como a sorte, que são sempre bem vindos. Mas isso independe se você é ou não fotógrafo. São dois fatores que valem para todos nós, nos mais diversos contextos.

 

TECNOGRAPHY: Quais serão seus próximos passos? O que quer fotografar ainda?

 

LEANDRO MARTINS: Neste momento estou com três projetos na cabeça. Tenho fotografado um desses projetos no campo, em meio a diversas plantações, ao mesmo tempo em que termino a pesquisa que estou fazendo sobre o tema. E tenho outros dois projetos ainda saindo do papel. Um envolve aproximadamente 8.000 fotografias de pessoas, enquanto o outro me coloca, pela primeira vez, em contato direto com as artes plásticas, a fim de conceber as formas que serão fotografadas no final do processo dessa produção. Esse trata da capacidade do ser humano de se transformar. No mais, sigo viajando, fotografando tudo o que de alguma forma me comove e buscando sempre um pouco de conhecimento, de sabedoria, através das coisas simples da vida. O contato com tudo o que é novo, me instiga a produzir, me traz novas referências que, por sua vez, me ajudam na relação com novas idéias.  ★

 

 

 

 

tatuagens de Frederico Rabelo

lâmpada: novos olhares, novas prospostas e formas de interpretação

O corpo humano sempre foi importante instrumento na representação da arte. Muito antes dele se tornar elemento presente em telas pintadas com óleo, acrílico e esculpido em materiais variados, na tentativa de uma aproximação do real ou mais tarde, fugindo para o oposto disso, éramos retratados em paredes de cavernas com gordura animal, carvão e barro. Mas o corpo como suporte também precede os grandes mestres das artes. Pinturas corporais como ornamentos parecem ser tão antigas quanto a história do homem sobre a Terra. Seja para camuflar na hora da caça, para rituais de passagens, momentos religiosos, seja por pura vaidade e questão de identidade, no transformar rostos, braços, bustos, pernas e costas em um emaranhado de significados gráficos que nos definem dentro de grupos e sociedades

 

Seja com urucum, misturas de minérios ou material sintético não tóxico, procuramos nos individualizar com os traçados pelo corpo. A tatuagem, gravada na pele, na carne, de forma permanente ainda alerta sobre crenças e ideais. Fazer arte na pele viva, que se arrepia, sente dor, que sangra é um trabalho que exige concentração, talento e paciência. Para poucos e bons.

 

Não se pode pensar que tatuagem seja algo comum, sua capacidade está em criar  novos significados ao corpo. Longe da banalidade a tatuagem pode ser forma e força. Arte e homem sem mediações, contato cru. Por isso FREDERICO RABELO está aqui, com sua forma autêntica e força bruta. A cada marca na pele, uma nova história.

 

 

il crudo

por RAQUEL GAUDARD

Lévi-Strauss pensou a antropologia dos ameríndios a partir de uma das oposições mais básicas da vida, o cru e o cozido - uma das ferramentas que serviriam, ao fim e ao cabo, para estudar os mitos fundadores de todos os povos. Eles que, desenvolvendo suas primeiras ferramentas e depois delas, portanto, o seu próprio cérebro, tornaram-se capazes de cozinhar seu alimento e perder menos tempo digerindo tantas carnes cruas para degustar, então, o pensamento.

 

Lançando o anzol para buscar esse peixe, veio a rede: estamos em 2015 e as raw images digitais povoam os discos duros cada vez mais soft'n'easy de se carregar. Não como baguetes, bem entendido, mas quase do tamanho das pílulas sublinguais, que nos transportarão num futuro, em segundos, para o universo dos wireframes. É de lá, do mundo binário, que elaboro os links que seguem. 

 

O cru de todas as coisas carrega em si as informações mais elementares para se constituir como tal. É a parte do todo que, como parte é todo, poderia filosofar Gregório de Mattos. Ou fazer poesia. É que o detalhe ali é complexo até um certo ponto, essa é a sua beleza. E parto, então, da nova estética da triangulação de Delaunay - que já nem é tão nova assim, depois que caiu na regra de três das modas e em todos os lugares você pode encontrar um visual quem lembram prismas. Da identidade de uma empresa local, a uma multinacional, ou estampada em camisetas. Eis a matrix.

 

Na verdade, é esse o “esqueleto”, de todas as imagens em três dimensões, a sua versão mais crua. E será que nós também somos assim, por dentro? Foi Boris Delaunay, quem inventou e batizou esse tipo de esquema, partindo de quatro pontos num círculo para chegar à sua condição tridimensional, considerando os círculos esferas. E desde 2012, foi entendido como uma estética do novo milênio. E as reproduções da moda se sucederam.


O fato é que, para fazer um upload dessa versão estética triangulada, talvez fosse mais

 

Instalação “Luma (Voronoi Cellscape)” - Trever Nicholas, fotografado por Eric Mueller no Minneapolis Institute of Arts.

esperto partir para o visual dos hexágonos, que segundo o matemático Georgy Voronoi, pode ser encontrado em diversos campos da ciência e da tecnologia. De porcelanatos e cerâmicas como tendência na última Expo Revestir de São Paulo, em março de 2015, às estruturas celulares: a natureza nos prova que a melhor maneira de se preencher um espaço vazio é com estruturas sextavadas. E o leitor sabe o que é mais bonito? É que esse visual também é conhecido como tesselatura. Sim, como nos tecidos.

 

Se a moda do futuro não é feita com agulha e linha, mas com softwares, uma impressora e algum aglomerado material – que pode ser atualmente de muitas coisas, vinil, madeira, metal - mas não tecido, nem tratado, nem cru. É o mistério da tecnologia, que coloca a serviço tantas coisas que servem para tanto e, ao mesmo tempo, servem para nada. As wearables technologies podem não passar de meros gadgets, caros e inúteis, caso algum tutano não seja articulado, nesse terreno onde glamour, ombros de fora e muitas cifras insistem em puxar a sardinha para um mundo que ainda vive de passado, enquanto as possibilidades estão todas aí, em cima da mesa.  ★

cozinha é arte

com ROLAND VILLARD

video entrevista

As transformações pelas quais os alimentos passam, seja pelo cozimento ou pela combinação de sabores e cheiros, mais parecem magia. Mas talvez sejam simples alquimia, vislumbrada por paladares apurados e por mãos de uma exatidão quase matemática, que temperam, moldam e servem pratos que enchem bocas d’água e olhos de beleza.  

 

A arte de transfigurar cereais, sementes, raízes, carnes e uma infinidade de ingredientes em uma composição que preenche os sentidos, está na video entrevista que a TECNOGRAPHY fez com o renomado chef ROLAND VILLARD, responsável pelo estrelado restaurante “Le Pré Catelan”, do hotel Sofitel Copacabana, no Rio de Janeiro.  Um dos responsáveis pela vinda da famosa escola francesa de gastronomia, a “Le Cordon Bleu” para o Brasil, VILLARD, promoveu uma revolução na cozinha, levou para o salão da alta gastronomia, elementos bem típicos das panelas brasileiras: o arroz e o feijão, que tornaram-se estrela do menu. Os gostos da Amazônia também foram incorporados ao seu universo culinário e receberam elogiosas anotações do importante Guia Verde Michelin - Rio de Janeiro.  

 

Ainda na adolescência, na França, VILLARD descobriu a paixão pela gastronomia e desde então, entre pesquisas e ingredientes, cria através do cru e do cozido, receitas, sempre com características do país, no qual está morando, como numa forma de desvendar a terra estrangeira. Assim, estabelece uma forte ligação com o local e com a cultura, uma vez que estes elementos são indissociáveis e combinam tão bem quanto a um prato cheio de sabor como é o caso do feijão com arroz.  

 

Fique a vontade para clicar no play >>

 

a palo seco

poema de JOÃO CABRAL DE MELO NETO

ed. CRU

# 02

(2015)

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agradecimentos: 

 

Artur Barrio

Cao Hui

Chris Chen | Pifo New Art Gallery (Pequim - China)

Davi Pessoa c. Barbosa

Frederico Rabelo

Leandro Martins

Raquel Gaudard

Roland Villard

Sofitel Copacabana (Rio de Janeiro)

Sonia Mara Viero 

 

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criadores

 

Alexandre Rese: 

Editor e diretor de arte

 

Iriê Salomão Jr.:

Editor 

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expediente:. este é um projeto experimental, um “ensaio” reflexivo e visual, baseado nas novas formas de disseminação e interação através da tecnologia:.  № 2 - CRU:. distribuição/ leitura online/ download gratuito:. ISSN: 2358-8667::.

 

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