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a forma do vazio: Franco Rella

por DAVI PESSOA C. BARBOSA

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Antes de iniciar o percurso que me propus, farei um desvio para falar do quanto me ocupei nos últimos meses desenhando uma espécie de horizonte teórico no qual se situaram temas e problemas que cruzaram ou que talvez delinearam o conjunto das questões que decidi enfrentar neste texto.

 

Há algum tempo venho pensando nas fraturas que a escritura poética e a arte incorporam em si, e que se tornam evidentes naquela que gostaria de definir como linha de desfiguração que atravessa o século XX, a qual se estende ao lado da história da literatura e da arte tal como se codificaram. Para exemplificar, poderia lembrar Giacometti, Bacon, Fontana, Kafka, Artaud, Beckett e o Pasolini de Petrolio. Há uma imagem que usei algumas vezes e que resume e evidencia esse percurso. É a imagem do “Violino” de Picasso, na leitura que Gottfried Benn faz dela.

 

Benn fala de “cosmos explodidos”. Picasso vibra como uma machadada o seu violino no mundo, o faz em pedaços e depois recompõe seus estilhaços, criando assim seu violino de sangue, que é, de fato, uma nova imagem do mundo. [1] Uma imagem do mundo que incorpora o gesto violento, fazendo emergir dela a verdade. O gesto do artista é um gesto cosmogônico. Cria um mundo, mas essa criação traz uma violência implícita no seu gesto. O artista o sabe. É o risco que deverá sempre enfrentar: desconstruir para construir. Ou, para usar uma expressão extraordinária de Kafka, o artista está empenhado numa zerstörende Aufbau der Welt [2]: uma destrutiva construção do mundo. Essa fratura também passa pela escritura ensaística. Benjamin sempre esteve consciente disso, desde o seu ensaio “Afinidades eletivas” de Goethe, de 1922, até a Premissa gnosiológica do Drama barroco alemão, de 1926. [3]  

 

Segundo Benjamin, o ensaio é uma filosofia que faz agir a violência da forma contra o imperialismo do conceito. Como se movimenta essa estranha filosofia? O ensaio é

 

 

* Agradecimento especial a Franco Rella por nos ter autorizado a tradução e publicação deste ensaio. [N. T.]

Violino com Uvas (1912), óleo sobre tela - Pablo Picasso

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arte: “A arte de interromper-se contra o fluir da cadeia dedutiva” (p. 8). O ensaio não leva a “coincidência o homogêneo, pois os extremos chegam à síntese” (p. 14). Essa filosofia é, de fato, “a forma que, dos extremos mais remotos (...) faz emergir a configuração da ideia como totalidade determinada pela coexistência dos opostos. A representação de uma ideia não pode, em nenhum dos casos, se considerar vitoriosa até que não se faça virtualmente uma análise do círculo dos extremos nela possíveis” (p. 21). E, portanto, “para a filosofia da arte são os extremos que são necessários” (p. 13). 

 

O ensaísta se move, assim, nas fraturas que a obra esconde em si. Move-se nas fraturas que ele próprio abre na obra. Revela as cesuras, o vazio, em que, como ele afirmou no ensaio sobre Goethe, o que está até então desprovido de expressão, das Ausdrucklose, se manifesta. Por isso, o ensaísta abre o texto a tensões e a dissonâncias inconciliáveis e inconciliadas: no texto pelo qual atravessa, mas também no texto que ele próprio escreve, nascido talvez como comentário, e que se torna uma aproximação ao conteúdo de verdade da obra e à sua própria verdade. Isso até chegar ao conceito de dialética im Stillstand, dialética suspensa e detida, a qual se repete continuamente nas suas notas sucessivas, no livro das Passagens [4].

 

Portanto, eine zerstörende Aufbau: uma construção destrutiva. Um oxímoro: uma construção que destrói e que incorpora em si, no seu ato construtivo, a destruição. Uma construção ou um construtor que leva à ruína, que produz escombros, que ama os escombros, mas os ama – como escreveu Benjamin num ensaio de 1931, o Caráter destrutivo – pela vida presente neles [5]. Percorrendo esse caminho me confrontei com alguns problemas, os quais eu considero muito insólitos: problemas de arquitetura, embora não seja nem mesmo capaz de ler uma planta de um simples projeto. É verdade que venho aos poucos me ocupando do conceito de projeto e de construção histórica, e é verdade que o meu interesse pela estrutura e pela cultura da metrópole, a saber, a cultura metropolitana, interagiu com reflexões relativas à arquitetura que se moviam nas minhas paragens, tanto que, além de ter ensinado toda uma vida numa Faculdade de Arquitetura, comecei a escrever para várias revistas de arquitetura, tal como “Domus”, “Lotus international”, “Casabella”, “Assemblage”, “Shadow” e “Topos”, e a participar de algumas aulas do Mestrado em “Archiettura, Storia e Progetto” da Universidade Roma 3.

 

Para mim, a arquitetura é a vibração de uma cidade ou a experiência de um espaço. É, por exemplo, a experiência da vertigem no interior de uma catedral gótica. A projeção em direção ao alto não é para mim uma elevação, mas um lançar-se na escuridão, naquela escuridão à qual se referiram os místicos, de Angela da Foligno ao Mestre Eckhart. Pensemos no espaço escuro sobre nossas cabeças. Pensemos em quando tal espaço era lambido pela chama das velas, pela chama das tochas, quando os monges iam à igreja para rezar, mesmo às três da madrugada. 

 

Vertigem. Vivi a experiência das vertigens visitando, nesse verão, o Museu Judaico de Berlim, o museu de Daniel Libeskind. Uma vertigem. Um outro tipo de vertigem.

 

Berlim. A exposição universal da arquitetura, quase criando a suspeita de uma espécie de fetichismo, como nas exposições universais do século XIX: Piano, Rossi, Gehry, Rogers, Moneo, Sharoun, Novel, Ungers, Koolhaas. Depois, a alegoria do cemitério judaico de Peter Eisenman, e, completamente distinta em relação a tudo isso, a obra de Libeskind [6]. 

 

Vertigem, estorvo. O vazio. Justamente por causa de minha formação sinto necessidade de movimentar-me usando palavras e referências extra-arquitetônicas, por exemplo, as palavras de Kafka, pois, desse modo, podemos descobrir o quanto o autor de O Castelo estava presente em Libeskind. Kafka, numa narrativa de sua juventude, Diálogo com o orador (escrita entre 1904 e 1909), escreveu: “Tenho uma experiência e não brinco quando digo que me sinto mareado em terra firme”. E mais adiante, em 1917, nos Aforismos de Zürau: “O caminho verdadeiro segue por sobre uma corda, que não está esticada no alto, mas se estende quase rente ao chão. Parece mais determinada a fazer tropeçar do que a facilitar o trânsito”. E ainda, nos aforismos, Kafka fala do terreno sobre o qual apoiamos os pés, o qual não é maior do que os dois pés que o pisam [7].

 

O holocausto é, de algum modo, uma cesura e um fim na história. Acredito que Libeskind tentou aquela que poderíamos definir de uma arquitetura do fim, provocando incertezas e desorientação. E desorientação é o que Freud definiu das Unheimliche [8]. A palavra Unheimliche contém heim, que significa aquilo que é relativo à “casa”, aludindo, portanto, ao que é familiar, e un, que é a sua negação. Mas paradoxalmente a negação do que é familiar o conserva, o protege na própria palavra que o nega, na ambiguidade de uma experiência desconcertante.

 

Como dizia, a experiência do museu foi para mim estranha e, ao mesmo tempo, familiar. Porém, em que sentido foi familiar?

Anthony Vidler escreveu que “o museu judaico é uma leitura arquitetônica de Benjamin” [9]. O próprio Libeskind falou de sua obra como uma espécie de guia arquitetônico benjaminiano. E, efetivamente, o projeto – ele disse – foi inspirado na leitura dos capítulos de Rua de mão única de Benjamin, que representam uma montagem extraordinária e que levam à exploração sempre interrompida e sempre retomada da metrópole. Assim, Rua de mão única de Benjamin envolve, de fato, uma parte considerável do projeto. O livro é “um aspecto incorporado no interior da sequência contínua de suas seis camadas ao longo de um zigue-zague, cada uma dessas camadas representa uma estação da estrela descrita no texto do apocalipse berlinense de Benjamin” [10].

 

Trata-se, como fez Benjamin em Rua de mão única, de realizar “uma viagem na substância de uma cidade e da sua arquitetura [que] comporta um realinhamento de pontos arbitrários, de linhas desconexas e de nomes fora de lugar” (Libeskind, “Radix-matrix”, p. 18). Só assim se pode reagir ao “apagamento da história”, apenas dessa forma se abre ao futuro “delineando o invisível em base do visível” (ibidem, p. 10). Como se vê há uma continuação de inspiração com Benjamin, seja na valorização que este fez da montagem em Rua de mão única, seja onde encontramos em Benjamin das Ausdrucklose, o indizível que se manifesta nas cesuras do visível. Também há continuidade com as fraturas que Benjamin caracterizou na estrutura do ensaio. No entanto, a continuidade é ainda mais forte lá onde Libeskind escreve: “Berlim pode ser considerada uma capital espiritual do século XXI, mas que ao mesmo tempo foi o símbolo apocalíptico da queda do século XX. A identidade de Berlim não pode ser refundada nas ruínas da história ou na “reconstrução” ilusória de um passado arbitrariamente selecionado”. 

 

Estamos, aqui, é evidente, próximos às teses de O conceito de história. Não pode existir reconstrução, não é possível “recompor a cesura”. Os conflitos “não podem ser resolvidos reconstruindo um passado vazio, mas colocando novas fundações e novas imagens que estejam abertas a dinâmicas concretas” (“Radix-matrix”, p. 20). Estamos, como se vê, muito próximos às teses sobre o Conceito de história [11] de Benjamin, sobretudo, à IX tese, com o anjo que surge ali, que deseja recompor a cesura, mas que é arrancado dali pela própria cesura. Não se pode recompor, não se pode reconstruir, porém, segundo Benjamin, se destrói para abrir caminho, para abrir ao Messias, ao futuro no qual se estende um passado que nele deve ser levado em consideração.

 

Todavia, a experiência para mim decisiva foi a experiência do vazio. As fraturas, os “fragmentos quebrados”, os farrapos abrem ao vazio no qual o invisível torna-se aparente enquanto invisível, como Libeskind escreve em alguns momentos. Vem à tona Georges Bataille quando afirma que o fim do fundamento sobre o qual se baseavam a filosofia e sua linguagem nos coloca diante de algo impensável, irrepresentável, mas também acrescentava: “O que significa a verdade (...) se não vemos aquilo que excede a possibilidade de ver (...)? Se não pensamos aquilo que excede a possibilidade de pensar?”[12]

 

O vazio no Museu é concreto. É arquitetado, seja aquele que está fechado e inalcançável, seja aquele que é intersticial entre os cantos, e entre as linhas (between the lines) – o título que Libeskind deu ao seu projeto – que continuamente vêm ao nosso encontro e nos questionam. O vazio, portanto. Confesso que pensei e que ainda penso que o Museu seria perfeito se estivesse completamente vazio. Se tal vazio não fosse de algum modo aliviado pelos testemunhos que nele estão depositados. São coisas e testemunhos dilacerantes, porém não podem sê-lo assim como o invisível e o indizível que respiram e sopram no vazio.

 

Um dos aspectos constitutivos do projeto, escreveu Libeskind, é a obra incompleta de Arnold Schönberg, Moisés e Aarão. No fim, Moisés não canta mais, não pode cantar. Fala, mas só fala para evocar a palavra ausente. “Ó palavra, tu palavra”. “Quando canta” – escreve Libeskind (“Radix-matrix”, p. 34) – “não conseguimos entender as palavras, mas quando não há mais canto, entendemos a palavra perdida de Moisés: o apelo à palavra”. Esse, conclui Libeskind, é um aspecto do projeto. O vazio que se abre na palavra que finda, que se torna impronunciável. É também a palavra impronunciável que conclui O Castelo de Kafka: “A sala na cabana de Gestäcker estava iluminada fracamente só pela chama do fogão e por um toco de vela, sob cuja luz alguém, inclinando num nicho debaixo das traves do teto, que ali se projetavam oblíquas, lia um livro. Era a mãe de Gestäcker. Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse” [13].

 

O que ela disse nunca saberemos. O que está escrito no livro que a mulher está lendo nunca saberemos. Mas o romance de Kafka não é incompleto, como já afirmaram tantos estudiosos. O romance se realiza na ausência da palavra, na sua extinção, no seu vazio. O vazio na trama da escritura, na trama da arquitetura. É o tema de um debate que, num certo momento, animou a cena teórica mundial, envolvendo departamentos de filosofia e arquitetura e de filosofia na Europa e, sobretudo, na América. A questão da desconstrução. A questão de Derrida, Eisenman e Libeskind [14].

 

Derrida pensava ter encontrado a linguagem e a teoria da nova arquitetura. Como veremos, a pedra no meio do caminho, que o distanciará do auge da discussão sobre arquitetura é precisamente a questão do vazio. O vazio não está realmente vazio, diz Derrida na Réplica a Daniel Libeskind (Derrida, “Maintenant l’architecture”, p. 281 – Rella faz referência, no entanto, à edição italiana “Adesso, l’architettura”, 2008). Ele é, ao contrário, a tentativa de subtrair-se à “disseminação política”. A réplica de Libeskind é peremptória (ibidem, p. 284): “O que um arquiteto deve fazer, nesse caso, é impedir que o vazio seja preenchido. Uma das características desse vazio peculiar é que é muito fácil de ser preenchido, com o objetivo de terminar o edifício”. Sobre ele há uma pressão política e social. Está sendo construído um espaço, e, portanto, dizemos: “por que não preenchê-lo? Por que não usá-lo? O projeto é [pensado], pelo contrário, para torná-lo inacessível”. Libeskind tentou, assim, projetar o vazio, o vazio intersticial, between the lines, através de fraturas, e tentou propor, paradoxalmente, o vazio como espaço, o vazio exatamente como coisa, pois o “museu é uma sequência de vazios concretos, dois dos quais manifestam a sua concretude com a sua completa impenetrabilidade. Ninguém pode entrar neles” (Trauma, p. 57). 

 

O que tem a ver Derrida com tudo isso?

Como se fez presente?

 

Em 1982, Bernard Tschumi obtém o cargo para projetar o “Parc de la Villette”, em Paris. Propõe um projeto com estruturas de ferro e pontos de interseção que ele chama de “folies”. Em 1985, convida Derrida para se ocupar juntamente com Peter Eisenman de um projeto para um pequeno lote de terra, uma parte do jardim. Tratava-se de unir a escritura filosófica à escritura arquitetônica, porque para Eisenman, e, sobretudo, para Derrida, a arquitetura também é um texto.

 

Antes, porém, é necessário fazer aqui algumas observações preliminares. A arquitetura feita de cantos, transgressões, grades, pontos de interseção, como a de Tschumi e de Eisenman, parecia poder ser reconhecida ou ser realmente refletida no pensamento da desconstrução de Derrida, que estava se tornando central no debate europeu e americano. Derrida publicou nos anos 60 um livro fundamental, A escritura e a diferença, no qual traduz o ataque à metafísica realizado por Heidegger num ataque ao logocentrismo que está no coração da civilização ocidental. É um ataque ao logos, como palavra e como pensamento, que se move insinuando uma diferença que Derrida propõe numa dupla articulação: différence/différance, que vai além – diferindo-se continuamente – não só da centralidade do logos, mas também da tensão conflituosa do pensamento da contradição. Esse diferimento torna-se, ao poucos, disseminação, que é o título de um livro de Derrida de 1972 [15]. O logos é, por fim, um texto, e este é desconstruído ao infinito, transformando-se em pré-texto, sobre o qual se constrói um outro texto, que, por sua vez, se torna pré-texto. Ao infinito e nunca se chega à densidade rugosa do sentido. Por outro lado, eram os anos em que o pensamento de Lacan privilegiava o significante em detrimento do significado. Até mesmo os movimentos de contestação daqueles anos também se basearam em Derrida, lendo o ataque ao logocentrismo como ataque ao poder. Os movimentos feministas o leram como ataque ao falogocentrismo: o domínio do logos identificado com o falo, com a lei do pai, ou seja, com o domínio do masculino.

 

Mas voltemos à arquitetura.

 

Derrida celebra esse seu encontro com uma série de textos: Point de folie – maintenant l’achitecture dedicado ao projeto de Tschumi, depois Pourquoi Peter Eisenman écrit de si bons livres, e Cinquante-deux aphorismes pour un avant-propos (avant-propos porque é a introdução de um livro coletivo sobre filosofia e arquitetura), todos publicados em 1986. Além disso, há o texto Khôra que Derrida leva como dote ao projeto feito com Eisenman, que antes se chamou, de fato, Choral work (obra coral), e depois Choral L Works, no qual o primeiro significado é, por assim dizer, desfeito [16]. Que a relação com Eisenman e com Libeskind – que Derrida equivocadamente lê como protagonistas de uma solidariedade arquitetônica e teórica absoluta – passaria a ser problemática é evidente na leitura do aforismo 50, um dos aforismos conclusivos da série dos 52: “O sem fundo de uma arquitetura “desconstrutiva” e afirmativa pode provocar vertigens, mas não é vazio, não é o resto aberto caótico, o hiato da destruição”.

 

A arquitetura pode dar uma sensação de vertigem, porém, para Derrida, essa não é o vazio. Não é o negativo. Não é destruidora. Tudo o que é disseminado constitui, aliás, no texto literário ou filosófico, uma rede que cobre todos os espaços. Não diferentemente deve atuar o texto de arquitetura nas suas desconstruções.

 

Derrida realiza tal procedimento aos poucos numa série de intervenções futuras, quando afirma, por exemplo, que a “desconstrução é afirmativa (...) não é niilista”, ou quando reforça a sua hostilidade voltada à collage, ou seja, à montagem que Benjamin havia recebido do surrealismo como método construtivo, porque “a collage implica o fragmento (...) e isso implica que há um corpo ao qual esse fragmento pertence. É uma espécie de desintegração (...). Muitos pensam a desconstrução como algo próximo a tal desintegração. Este não é o significado de desconstrução”[17].

 

Essas são as ideias que estão na base do texto Khôra que Derrida doa a Eisenman para o projeto deles. É um texto de filosofia escrito em homenagem a Jean-Pierre Vernant, o qual se torna um texto canônico para a arquitetura e ao qual Derrida se refere continuamente nas suas discussões.

 

Platão avança o conceito khôra no Timeu. É o lugar em que as ideias tomam forma no mundo, mas que é em si desprovido de forma, e que é, portanto, uma “ideia que não é ideia”, um pensamento “bastardo”, afirma Platão, como aqueles que surgem em nossos sonhos (52b). Platão precisa de um informe que seja desde o início – portanto, ab aeterno – capaz de absorver formas sem, por assim dizer, fazer resistência. A khôra é eterna como as ideias e as formas, porém não é nem ideia nem forma. Derrida segue Platão com grande maestria filosófica. Também nomeia Aristóteles que irá se referir ao conceito platônico traduzindo khôra por hule, “matéria”, mas que é também, originalmente, o termo que designa a madeira com a qual, por exemplo, se construíam os navios. O que Derrida não diz é que o conceito se move através de Plutarco e depois, por Numênio, para chegar à tradução latina do Timeu por obra de Calcídio, no IV século depois de Cristo. Calcídio procura manter juntas tanto a lição aristotélica de húle, no significado originário de madeira, como o conceito de “informe” ligado à khôra platônica, desse modo, traduz khôra por silva dando a este termo o valor daquilo que é móvel e informe, como o movimento ondulatório e inextricável das folhas, que encontra também um correspondente no movimento das ondas e no escorrer das águas. “Khôra-selva” é algo “fluido e sem qualidade”. É um informe, portanto, disponível a toda forma.

 

Assim, khôra é precisamente o movimento caótico que Derrida recém negou. Mas é esse – e não a khôra de Derrida – que atravessa todo o ocidente, de Giovanni Scoto Eriugena a Dante Alighieri, e, passando pelo Renascimento, até chegar à cidade selva de Balzac, às calçadas nas quais se move a multidão-floresta de Baudelaire. Até a introdução de O Homem sem qualidades de Robert Musil [18]: “Não dou maior importância ao nome da cidade. Como todas as metrópoles, era feita de irregularidade, mudança, avanço, passo desigual, choque de coisas e acontecimentos, e, no meio disso tudo, pontos de silêncio abissais, de uma grande pulsação rítmica e do eterno desencontro e dissonância de todos os ritmos”.

 

A desconstrução não conhece, então, colisões, não conhece desencontro e discordância. A khôra de Derrida é um vazio que não é um vazio. A sua preocupação se torna agora aquela de diferenciar esse seu vazio do vazio “ruim” de Eisenman e Libeskind, que ele vê, de todo modo, unidos, como está claro na carta enviada por ele a Peter Eisenman, a 12 de outubro de 1989, o ano em que, além do mais, Libeskind vence o concurso para o museu judaico de Berlim.

 

Não se compreende se a presença ausente no congresso “Sobre o pós-modernismo e além de: a arquitetura como a arte crítica da cultura contemporânea” [19], ocorrido em Irvine, tenha se dado pelo impedimento real ou por uma dissidência que Derrida queria manifestar na sua carta, que foi publicada em 1990, pela revista “Assemblage” e que depois ganhou várias publicações. O título do congresso torna explícita a vontade de potência que a arquitetura exprimia não como uma, mas como a arte crítica por excelência, portanto, contrastando necessariamente com a mesma vontade de potência que desde sempre animou a filosofia. Derrida critica o recurso ao conceito de ausência que – escreve – “vocês, Eisenman e Libeskind, evidentemente, “apreciam e encorajam”. O equívoco de Eisenman é justamente a má interpretação da khôra de Derrida, que “não é nem o vazio, como às vezes sugerem, nem a ausência e nem a invisibilidade”. E, assim, o projeto comum, transformando-se de obra coral, de Choral work, a Chora L Works, é ainda a mesma coisa? “Quando começamos a trabalhar juntos, embora não o tenhamos realizado, nesse “Choral Work” que ainda não está construído, mas que se vê e se lê em todos os lugares? Quando deixamos de fazê-lo?”.

 

Eisenman precisou explicar aos congressistas, na Universidade da Califórnia, em Irvine – onde Derrida ensinou por um longo período – a sua khôra, que não é mais a khôra de Derrida. Cabe-lhe a tarefa de explicar o que desviou do projeto originário. Derrida, nesse ponto, como uma espécie de promotor de acusação, leva o texto de Walter Benjamin, Experiência e pobreza [20]. Segundo Derrida, Benjamin, nesse texto, fala de uma “nova pobreza”, fala ou profetiza um conjunto errante de pobres, de homeless absolutamente “irredutível às classificações e às localizações antigas da marginalidade ou da escala social, os baixo-salariados, o proletário, os desocupados etc.” No entanto, Benjamin não fala disso. Fala da pobreza de experiência comunicável dominante precisamente depois que a Grande Guerra colocou em campo um acúmulo de experiência que até então não havia comparação na história da humanidade. Uma experiência imensa não comunicável, uma pobreza de experiência que induz a fazer com muito pouco, a iniciar a partir do novo. É isso que fazem os bárbaros, é isso que fazem os grandes criadores. Os “implacáveis que, em primeiro lugar, eles eliminaram. Eles queriam ter uma mesa para desenhar”. Entre eles, Descartes, Newton, Einstein, o cubismo e Paul Klee. Entre eles, Adolf Loos, Paul Scheerbart, a arquitetura de vidro, ou seja, a arquitetura sem aura. Como se vê, Benjamin não fala de homeless, ou de uma pobreza que vai além de toda classificação, diante da qual o niilismo intelectual da arquitetura deveria recuar. Derrida cita, modificando-o amplamente, o Drama barroco alemão, afirmando que no passado a arquitetura organizava a fragilidade das coisas que construía como uma resistência à destruição. No entanto, vimos que o Caráter destrutivo “reduz o existente em ruínas, não por amor das ruínas, mas pelo caminho que as atravessa”. Também a arte de Baudelaire, lemos num fragmento das Passagens: “é útil na medida em que é destrutiva. Sua ira destrutiva visa particularmente o conceito fetichista de arte. Desta forma, ela serve à arte "pura" no sentido de uma arte purificada” (J 49, 1).

 

Derrida, ganhando força com Benjamin, convoca Eisenman a responder aquilo que Libeskind afirma numa entrevista, na qual fala de um vazio que se materializa, de fragmentação, de “invisibilidade que” – diz Libeskind – “procurei levar à visibilidade. A nova extensão é concebida como um emblema no qual o invisível, o vazio, se manifesta como tal” [21]. Portanto, “ainda o vazio, a ausência, a negatividade, tanto em Libeskind como em vocês”, escreve Derrida. “Deixo-os se desenredarem sozinhos com essas palavras, caro Peter, caro Hillis [22], mais uma vez lhes direi o que penso disso, mas o sugeri começando”. A carta termina com dois post-scriptum. O primeiro é uma refutação enfurecida de uma entrevista em que Eisenman tomava distância da desconstrução, afirmando que ela é um termo literário e não arquitetônico. “A desconstrução aborda a arquitetura como uma metáfora e nós tratamos a arquitetura como uma realidade”, havia declarado Eisenman, provocando o ressentimento de Derrida.

 

Libeskind não é Eisenman. O vazio de Libeskind não é o vazio de Eisenman, como ele mesmo irá reforçar (Derrida, “Adesso l’architettura”, p. 274) na réplica ao texto de Derrida, Réplica a Daniel Libeskind, presente em Radix-Matrix, publicado em 1997, no ano em que é realizado o Museu de Berlim. Diversidade – se me permitem um deslizamento pessoal – que me afastou de Eisenman. Distanciamento que mais ou menos coincidiu também com o meu afastamento de Derrida.

 

Acredito, sobretudo, que a carta enviada a Peter Eisenman seja uma tomada de distância de Derrida do perigo no qual havia pensado sobre uma intervenção direta nas questões arquitetônicas. Acredito também que naquele momento houve um direcionamento alhures dos arquitetos à procura, no melhor dos casos, de uma filosofia (as “Heterotopias” de Michel Foucault, os “Não-Lugares” de Marc Augé), ou, no pior dos casos, da escolta de um filósofo.

 

 No centro de sua réplica a Libeskind, escrita quando o afastamento havia ocorrido, ainda se encontra a questão do vazio. Um vazio historicamente determinado, escreve Derrida, “não é, por exemplo, o lugar indeterminado no qual tudo tem lugar”, ou seja, na khôra. “É um vazio que corresponde a uma experiência que em algum lugar você chamou de o fim da história – o Holocausto como fim da história”. O fim é uma borda. O vazio que Libeskind criou “foi determinado por um acontecimento – o Holocausto, que é também o fim da história”. A minha “ansiosa questão – prossegue Derrida – tem a ver com a relação entre esse vazio determinado, totalmente investido pela história, pela plenitude de significado, pela experiência, e o próprio lugar, o lugar como uma não-antropológica, não-teológica possibilidade para esse vazio ter lugar. A lógica da khôra, portanto. É um desafio à lógica da exemplaridade” (Ibidem, p. 270-272).

 

Como se vê, para Derrida, tudo volta a girar ao redor da khôra, o vazio sem fraturas, sem fragmentos, uma espécie de vazio pleno, contraposto ao vazio determinado e investido pela história, pela plenitude de significado. Um vazio que não é um vazio, segundo Derrida, assim como também não é um vazio neutro, ou neutral, celebrado por Blanchot.

 

Está claro que o disseminador não pode suportar nem um vazio no qual a poeira do sentido se dispersa, nem uma plenitude de significado que forçaria a arrastar o diferimento ao infinito. O que parece escapar completamente a Derrida é que o holocausto é, sim, uma plenitude de sentido, mas de um sentido irrepresentável. É o indizível absoluto. Um pensamento que, nesse ponto, não se move contra si mesmo, que não vai em direção ao extremo é, como disse Adorno, cúmplice “daquela música de entretenimento com a qual as SS amavam abafar os gritos das suas vítimas” [23].

 

O vazio do Museu de Libeskind alude, a meu ver, justamente a esse vazio, a esse irrepresentável. É por isso que, como disse antes, teria ainda um sentido mais forte um museu que ao invés de acolher rechaçasse as coisas que surgem para habitá-lo e preenchê-lo. Percebo que aqui estamos numa contradição dificilmente sanável. Paradoxalmente, para chegar à palavra muda que possa testemunhar o holocausto é necessário remover os seus testemunhos. Dentro dessa contradição, precisamos nos mover, assim como no aforismo de Kafka, sempre no instante de tropeçar.

 

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Referências:

[1] G. Benn, “L’io moderno”, in: Lo smalto sul nulla, a cura di L. Zagari. Adelphi: Milano, 1992, p. 25.

 

[2] Nachgelassene Schriften und Fragmente II, a cura di M. di J. Schillermeit, in F. Kafka, Kritische Ausgabe, a cura J. Born, G. Neumannn, M. Pasley und J. Schillermeit, Fischer Taschenbuch Verlag, Frankfurt a.M. 2002 tr. it. In: Il silenzio delle sirene. Scritti e frammenti postumi, a cura di A. Lavagetto, Feltrinelli, Milano, 1994, p. 83.

 

[3] W. Benjamin, Il dramma barocco tedesco, tr. it. di F. Cuniberto, Einaudi, Torino 1999. O ensaio sobre Goethe in: W. Benjamin, Opere complete, ed. it. a cura di E. Ganni, vol. I, Einaudi, Torino, 2008.

[4] In: Opere complete cit. vol. IX, Einaudi, Torino, 2000.

 

[5] In: Opere complete cit. vol. IV, Einaudi, Torino, 2002.

 

[6] As reflexões de Libeskind e o debate relativo são referentes a D. Libeskind, radix-matrix, Prestel, Munich-New-York, 1997; “Trauma” in: Image and Remembrance: representation and the Holocaust, Indiana University Press, Bloomington, 2003. Alguns dos textos de Derrida, mas também de Eisenman in: J. Derrida, Adesso l’architettura, a cura di F. Vitale, Libri Scheiwiller, Milano, 2001.

 

[7] F. Kafka, La metamorfosi e tutti i racconti pubblicati in vita a cura di A. Lavagetto, Feltrinelli, Milano, 1991; Aforismi di Zürau, a cura di R. Calasso, Adelphi, Milano, 2004, aforismos 1 e 25. (Citado, aqui, na tradução brasileira, in: F. Kafka, 28 desaforismos. Tradução de Silveira de Souza. Edufsc: Florianópolis, 2010, p. 11).

 

[8] S. Freud, Das Unheimliche (1919), in: Studienausgabe, S. Fischer Verlag, Frankfurt a. M., vol. IV, 1970, tr. it. di S. Daniele, in Opere, Boringhieri, Torino, 1966-1980, vol. IX.

 

[9] A. Vidler, Warped Space: Art, Architecture and Anxiety in Modern Culture. Mit Press, Cambridge MA, 2000, p. 238.

 

[10] “Radix-Matrix”, p. 34. Strada a senso unico se encontra in: W, Benjamin, Opere complete cit. vol. II (2002). Na página 26 Libeskind também lembra, entre as figuras que estão acima de seu projeto, Franz Kafka, Walter Benjamin, Primo Levi, Osip Mandelstam, Paul Celan.

 

[11] W. Benjamin, Sul concetto di storia, a cura di G. Bonola e M. Ranchetti, Einaudi, Torino, 1997.

 

[12]  G. Bataille, Préface à Madame Edwarda, Œuvres complètes, vol. III, Gallimard, Paris, 1971, p. 12.

 

[13] F. Kafka, Il castello, tr. it. di P. Capriolo, Einaudi, Torino, 2002, p. 347. (Citado, aqui, na tradução brasileira in: F. Kafka, O Castelo. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 351-352).

 

[14] Parte desse debate, naquilo que nos interessa, está presente in: Derrida, Adesso l’architettura. Outros textos de Derrida: Chora tr. it. di F. Garritano in: Il segreto del nome, a cura di G. Dalmasso e F. Garritano, Jaca Book, Milano, 2005; Point de folies - maintenant l’architecture (1986), in: Psyché, Galilée, Paris, 1987; Pourquoi Peter Eisenman écrit de si bon livres (1986) in: Psychécit.; Cinquante-deux aphorismes pour un avant-propos (1986) in: Psyché cit.

 

[15] J. Derrida, L’écriture et la différence, Seuil, Paris, 1967, tr. it. di G. Pozzi, Einaudi, Torino, 1972; La dissémination, Seuil, Paris, 1972, tr. it. di S. Petrosino e M. Odorici, Jaca Book, Milano, 1989.

 

[16] J. Derrida – P. Eisenman, Choral L Works, a cura di J. Kipnis, Monacelli, New York, 1997.

 

[17] Frammenti di una conversazione con Jacques Derrida in: Adesso l’architettura, p. 108-109. A conversa ocorreu em 1987.

 

[18] R. Musil, L’uomo senza qualità, tr. it. di A. Rho, Einaudi, Torino, 1996.

 

[19] Postmodernism and Beyond: Architecture as the Critical art of the contemporary Culture, University of California,Irvine 26-28 out. 1989 in: Adesso l’architettura, p. 201-217.

 

[20] In Opere complete cit. vol. VI, Einaudi, 2004.

 

[21] Interview with Daniel Libeskind. Winner: the Berlin Museum Competition, publicada em “Newsline” (revista da escola de arquitetura da Columbia).

 

[22] Daniel Hillis, entre os organizadores do congresso.

 

[23] S. Friedlander (ed.), Probing the limits of representation. Nazism and the “Final solution”, Harvard University Press, Cambridge, Mass. 1992 e P. Ricœur, “Quelques réflexion sur l’intitulé du séminaire”, in AA.VV., Travail dé mémoire 1914-1998. Une nécessité dans un siècle de violence, Autrement, Collection Mémoires, Paris, 1999.

Th. W. Adorno, Dialettica negativa, a cura di S. Petrucciani, Einaudi, Torino, 2004, p. 328.

 

 

 

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